Onde nasceu?
Nasci na freguesia do Livramento. Cresci e fiz todo o percurso na freguesia onde ainda resido. Sou um homem do Livramento de gema.
Como foi passada a sua infância?
Tenho quatro irmãos (comigo somos cinco) e nasci numa família humilde. O meu pai começou por ser camponês, depois foi ajudante de motorista e posteriormente ainda foi estivador. Mas no período antes de ser estivador, vivemos com algumas dificuldades porque o rendimento era muito fraco e sustentar sete pessoas era muito complicado. Somos quatro rapazes e uma rapariga. A minha irmã é a mais velha e foi a primeira que começou a trabalhar. Tinha 14 anos e naquela altura, isso ainda não era muito bem visto. A mentalidade das pessoas não estava tão aberta para essa realidade, mas, de qualquer forma, talvez tenha sido uma oportunidade para que outras lhe seguissem nesse caminho de independência das próprias mulheres.
Foi um exemplo para si?
Sim. Eu estudei apenas até aos 16 anos. Em primeiro lugar, apesar de ser bom aluno, porque não gostava muito da escola e também porque percebia as dificuldades que o meu pai atravessava. Por isso, no 9º ano, optei por ir trabalhar para a Fábrica de Tabaco Micaelense, onde enfiei tabaco, tirei beterrabas, acartei tabaco e comecei a ajudar na economia familiar. Para além disso vindimávamos com fartura, era um hábito nas férias escolares, e havia uma autêntica multidão de rapazes e raparigas a vindimar. O Livramento era uma terra de uvas e era, naquela época, quase o quintal de São Miguel. Onde estão agora a fazer o cerrado do Carmo eram tudo terras de vinhas, de bananas e havia muito recrutamento de jovens estudantes para a apanha das uvas. Gostávamos muito e isso também trazia algum alimento.
Como era o Livramento nessa época?
Na década de 60/70 era uma freguesia quase rural. Não é o que é agora porque deu um salto qualitativo de grande dimensão. Basta ver os novos aldeamentos que surgiram, a captação de habitantes ou o aumento substancial de novos habitantes porque efectivamente o Livramento tem agora as infraestruturas necessárias para receber pessoas; tem creches, ATL’s, Centro de Saúde e tem acessibilidades que muita freguesia não tem. É uma das poucas freguesias que teve um aumento de população nos últimos Censos.
Nesses anos 60 e 70, havia muita pobreza?
Vou falar no meu caso. Comi pão de milho com banha, barrado com pimenta vermelha ou com açucar. Não havia muita fartura de alimentos e tive a sorte de a minha avó ser padeira e vender pão para fora. Aproveitávamos e comíamos as sobras. Recordo-me de um episódio com o meu pai quando era ajudante de transportes; a patroa deu-lhe um pão com queijo e manteiga e ele não o comeu. Levou-o para casa, retiramos o queijo para comer com outro pão e só depois comemos o pão com manteiga. Ainda relativamente à fome, quando éramos crianças íamos para a praia jogar todo o dia à bola para disfarçar a fome. Isso porque havia ali aquelas casas mais abonadas onde batíamos à porta e nos davam metade de um pão para comermos. Era uma forma diferente de viver, mas de que sinto, apesar de tudo, muitas saudades.
Eram outros tempos…
Outros tempos, mas mais felizes. Mais simples e no final do dia sentávamo-nos debaixo das nossas casas a conviver. Havia um espírito de comunidade e agora é tudo redes sociais. Vamos a um restaurante e as pessoas nem se falam, estão é com o telemóvel na mão. As pessoas só participam nas redes sociais e a falar mal de uns de outros. É a liberdade de expressão mas acho que devia haver uma maior moderação nesses comentários.
Apesar de haver mais dificuldades quando era jovem, existia uma maior entreajuda?
Havia partilha de alimentos e a vizinhança toda acudia-se. Percebia-se quando alguém estava mais aflito e existia esse sentimento de comunidade. Era de salutar esse espírito que, infelizmente, muito raramente se vê agora. Hoje há uma parte nova, de moradores que vieram de fora e obviamente leva alguns anos até que se insiram nos movimentos da freguesia. Daí também a falta desse espírito comunitário.
Já disse que não gostava muito da escola, mas que era um bom aluno…
Era muito bom aluno e até nem usava livros. Tinha capacidade de captar ensinamentos e depois distraia os outros e às vezes levava (risos). Agora até nem sou, mas na altura era bastante falador. Estive até à 4ª classe no Plano dos Centenários e depois fui para a então chamada Escola Industrial e Comercial que agora é a Domingos Rebelo, onde estive até ao 9º ano. Depois disso, aproveitei as férias e fui para a Fábrica de Tabaco Micaelense. Daí, ingressei num estabelecimento comercial de fotocópias e depois fui para segurança do BCA, da universidade e do hospital de Ponta Delgada. Mais tarde, em 1992, entrei na Casa do Povo do Livramento e agora fui recrutado, no âmbito de um acordo de cedência de interesse público, pela Câmara Municipal de Ponta Delgada onde sou o coordenador de Relações Institucionais com as freguesias. Para além disso, sou também coordenador regional da ANAFRE.
Deixe-me voltar um pouco atrás. Quando estava na Escola já pensava seguir esta via?
Estava longe de imaginar e sinceramente nunca me passou pela cabeça. Foi um acaso ser Presidente de Junta e, mesmo das outras associações, nunca imaginei. As coisas foram surgindo derivado à função que já exercia na Junta e também para promover o tal espírito de comunidade.
Começa então a sua actividade cívica em 1992 na Casa do Povo do Livramento…
Antes disso ainda tive a mordomia de São João cerca de 10 anos que ficava na Rua da Glória, onde estava a antiga Casa do Povo e fui também delegado da equipa de futebol que militava no INATEL. A partir daí fui dando os outros passos…
Mas, no fundo, sempre teve vontade de ter um papel na actividade comunitária da freguesia?
Em 1993, o senhor José Pereira falou comigo e disse-me que eu era a pessoa ideal para integrar uma lista. Ele convenceu-me e formamos uma lista fora do contexto dos habituais partidos de poder e fui pelo PDA. Obtive dois mandatos à Assembleia de Freguesia, os mesmos do PSD. Evidentemente que o PSD percebeu que havia um potencial e que isso lhe poderia trazer alguma vantagem e foi nessas circunstâncias que me convidaram, em 2001, para ser candidato à Junta de Freguesia. Nessa eleição, obtive 67%. Sou Presidente desde essa altura, apenas com um interregno em 2013 por limitação de mandato e em que exerci a função de Secretário. Voltei a ser candidato em 2019 e agora estou no segundo mandato da ‘segunda volta’. Para além disso e como existiam algumas dificuldades em encontrar pessoas, fui Presidente do Rancho Folclórico, fui fundador da Associação Juvenil do Livramento e da Associação do Rosto de Cão do Livramento.
Tudo ligado ao Livramento. Nunca pensou integrar associações noutros locais?
Não, porque também não tenho muito tempo. Aliás já deixei todas essas associações. Mas fui fundador do Grupo Desportivo da Casa do Povo do Livramento, em 2015; tesoureiro da Comissão de Festas; vice-coordenador da delegação dos Açores da ANAFRE; estive como Conselheiro Nacional durante dois mandatos e actualmente sou tesoureiro da Casa do Povo do Livramento; coordenador regional da ANAFRE e, portanto, acho que tenho uma vida bastante preenchida e de grande responsabilidade.
Lembra-se do seu primeiro trabalho aos 16 anos e de quanto ganhava?
Não sei se já era o ordenado mínimo nacional (3.300 escudos). Mas até acho que não chegava a isso.
Era um trabalho duro?
As mãos ficavam todas esfaceladas, cheias de ferida e em carne viva. Estive lá apenas durante as férias e depois arranjei o tal trabalho na tal empresa de fotocópias e de venda de material escolar.
É casado?
Sou casado desde 1996 e tenho dois filhos. Um é engenheiro informático e o outro está no 2º de Sociologia. Apesar de não ser uma pessoa de grandes posses, a herança que deixo aos meus filhos são estes cursos e uma casa para eles se abrigarem.
Deixe-me adivinhar… a sua esposa é do Livramento?
Tinha de ser (risos). Conheci-a quando tinha 17 ou 18 anos, mas depois fui para a tropa e paramos. Mais tarde, quando tinha 33 anos retomamos o namoro e casamo-nos um ano depois. Casar é um passo muito importante, é um compromisso que não é brincadeira. Não é casar por casar e existem responsabilidades inerentes ao casamento, como a questão dos filhos, da habitação, do trabalho, de colocar comida na mesa e, portanto, há muitas coisas que têm de ser levadas em consideração.
Hoje em dia a pobreza talvez não seja como antigamente, mas existem outros problemas ligados à toxicodependência ou ao alcoolismo. Como vê a sua freguesia sob essa perspectiva?
À semelhança das outras freguesias esta também padece desse problema da toxicodependência, principalmente com as chamadas drogas sintéticas que deixam as pessoas completamente fora de si. Isso está ligado depois a alguma insegurança que daí advém com alguns furtos, roubos ou pequenas agressões. O Livramento não foge à regra, mas também é preciso perceber que a freguesia tem actualmente 6 ou 7 instituições que ocupam muita juventude. Não devemos olhar só para aquilo que está mal e sempre disse isto; muitas vezes aposta-se na divulgação televisiva do combate à droga e considero que o melhor é investir em equipamentos para ocupar esses jovens. Os equipamentos ficam e a publicidade passa 15 dias ou 1 mês e depois desaparece. Nós aqui, por exemplo através do desporto, já recuperamos alguns. Sempre defendi isto porque se os jovens tiverem para onde ir, vão afastar-se de caminhos menos recomendáveis.
Considera que hoje em dia vão faltando pessoas interessadas em realizar trabalho na comunidade?
É verdade que existiam mais há uns tempos atrás, mas as coisas também mudaram. O trabalho das pessoas não é como antigamente em que se cavava das 7 da manhã às 8 da noite. Era um trabalho monótono e compensava-se isso com o tal trabalho comunitário. Agora as pessoas têm o dia ocupado, os filhos para deixar nas creches e várias outras coisas que determinam que não possam ter tempo para dar à comunidade. Mas, nesse aspecto, o Livramento não tem razões de queixas porque tem uma Comissão de Festas muita activa, tem as tais colectividades de que já falei e temos conseguido puxar as pessoas.
Como vê a política actualmente nos Açores?
Penso que apesar das circunstâncias, da composição do Governo, têm havido muito boas medidas na área social. Apesar do senhor Vice-presidente ser uma pessoa controversa, têm sido tomadas medidas muito importantes. Houve também a questão da redução de passagens na SATA que levou à coesão territorial nos Açores, houve as creches gratuitas e houve várias medidas tomadas por este Governo. Se calhar a comunicação não é bem feita e daí essas questões e decisões tomadas, não serem tão valorizadas.
O que se deveria fazer para resolver alguns dos problemas existentes nos bairros sociais do Livramento?
Na minha opinião, aquele conceito foi mal conseguido. Considero que deveriam ser moradias unifamiliares, integrando uma família em cada espaço senão depois criam-se guetos. Apesar de haver ali (no Peixe Assado) muita gente trabalhadora, honesta, também há 3 ou 4 famílias que são desestabilizadoras. Não advogo, nem defendo o modelo existente. Na Junta de Freguesia temos um regulamento de emergência social e todas as pessoas que se dirigem à Junta não deixaram de ser apoiadas. Para além disso, a Câmara Municipal de Ponta Delgada aprovou o maior orçamento de sempre na área social e que apoia as creches, ATL’s, etc.
Sente um aumento de pessoas a virem pedir ajuda à Junta de Freguesia?
Sinceramente não tenho sentido. Isso não quer dizer que face às circunstâncias actuais não apareçam alguns pedidos, mas até agora tem sido o normal.
Até quando pensa manter um papel activo na freguesia?
Vou ponderar se vou fazer mais um mandato e aí acabará a minha função comunitária no Livramento. O problema é que não sou habilidoso e a única coisa que sei fazer são estes serviços comunitários e por isso talvez venha a sentir alguma falta.
O futuro associativo está assegurado no Livramento?
Costumo dizer que o cemitério está cheio de insubstituíveis e acho que existem pessoas capazes e com a mesma vontade de fazer igual ou melhor do que eu. Acho que já não falta muito ao Livramento e, modéstia à parte, penso que durante o meu tempo à frente da Junta de Freguesia foi dado um salto qualitativo que é reconhecido por toda a gente. Só falta mesmo o lar de idosos e reconverter o Solar da Glória em cuidados continuados. Tenho muito orgulho no meu trajecto e naquilo que fiz pela minha freguesia.
Considera que as freguesias deviam ter mais poderes e mais reconhecimento?
Uma das minhas reivindicações é a alteração da Lei de Finanças Locais para que as freguesias tenham competências próprias e para que, pelo menos, possam recrutar pessoas para fazer face às exigências com que nos deparamos no dia a dia. As freguesias ainda são olhadas como parente pobre, mas de qualquer forma, vai ser aprovada na ALRAA um Acordo de Cooperação Financeira muita mais importante do que aquele que havia há 20 anos. Vai aumentar exponencialmente o valor a ceder às freguesias e também as suas próprias competências.
Luís Lobão