A necessidade de minimizar o processo de vitimização secundária de uma criança ou jovem alvo de abuso sexual e a articulação entre as diversas entidades que actuam no âmbito desta problemática, foram dois dos principais assuntos em debate ontem de manhã no Teatro Micaelense, local onde decorre o seminário “Crianças e Jovens: Direitos, Acolhimento, Abuso Sexual”.
Renato Furtado: PJ recebeu 105 denuncias de crimes sexuais contra crianças no ano passado
O coordenador do Departamento de Investigação Criminal dos Açores da Polícia Judiciária, para quem os processos Casa Pia, em Portugal continental, e a Garagem do Farfalha, nos Açores, se constituíram como uma verdadeira mudança de paradigma, revelou que a quantidade de denuncias reportadas à PJ nos Açores não sofreu mudanças significativas nos últimos dois anos.
“Os números de 2021 e 2022 são muito próximos. Em 2022 foram 105 entradas por crimes sexuais contra crianças e no ano anterior tinham sido 104”, referiu.
Renato Furtado explicou também que “estamos a falar de entradas em bruto, ou seja, nem todos os processos que entram são depois processos em que se validou a existência do crime. Há muitas situações que ficam resolvidas, esclarecidas e alcança-se que na verdade não aconteceu um crime”.
Apesar de se verificar que “cerca de 30%” das denuncias acabam por não ser validadas, o coordenador do Departamento de Investigação Criminal destaca que a PJ até promove “esse tipo de sinalização para que sejamos nós os primeiros a contactar com a família, com as crianças e apurar a realidade dos factos”. Depois de ultrapassada essa fase de validação da denúncia, Renato Furtado explica adianta igualmente que “50% dos casos” resultam em acusação.
“A percentagem de arquivamentos é relativamente baixa”, avança também.
Renato Furtado destacou, em declarações aos jornalistas, a importância de a denúncia dar entrada na PJ com a maior brevidade possível: “Permite recolher o depoimento no sentido de perceber os factos que aconteceram, mas também para permitir a recolha de prova material (…) de um acontecimento recente em que ainda possa ser possível recolher vestígios do autor no corpo da vítima, na roupa e também no local onde os factos aconteceram. Por vezes, encontramos alguns vestígios importantes para reforçar a narrativas da vítima e para evitar que, no final do processo, seja a palavra da vítima contra uma negação por parte do agressor”, reforçou.
Outro dos temas abordados durante este seminário prendeu-se com a necessidade de reduzir o número de vezes em que uma vítima tem a necessidade de repetir o seu depoimento (em média isso sucede por oito ocasiões). O coordenador da PJ defendeu igualmente que a inquirição policial não substitui as “declarações para memória futura”.
“É uma antecipação de julgamento, é uma protecção porque, ao serem tomadas as declarações numa fase precoce da investigação, a vítima tem mais pormenores (…) uma outra grande virtude é que faz com que a vítima à partida não tenha de ir a julgamento. Isto é combater a vitimização secundária, é proteger a criança e a vítima do crime”, realça.
Para Renato Furtado, a introdução de um modelo, como o implementado na Islândia e onde o número de depoimentos da vítima diminui drasticamente, pode ser algo positivo.
“Tudo o que possa melhorar a salvaguarda da vitimização secundária é sempre bem vindo (…) É logico que esta intervenção, com este modelo ou com outro, para finalidade de declarações para memoria futura, não afasta a necessidade de uma inquirição logo após a prática dos crimes”, ressalva.
Numa outra vertente, o coordenador do Departamento de Investigação Criminal da PJ, defende que num crime de abuso sexual de crianças, “podendo as medidas ser tomadas contra o agressor, e se essas medidas forem suficientes para acautelar a situação da vítima, então este é o caminho”. No entanto, Renato Furtado lembra que podem existir casos onde, “mesmo depois da intervenção junto do agressor, com a detenção, com a aplicação de medidas de coacção, a situação da vítima no seu agregado familiar continue periclitante e que haja necessidade de outras medidas adicionais”.
Miguel Ângelo Carmo: Estatuto da Vítima “falha porque não existem meios” para que seja integralmente implementado
O Procurador da República para o Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e contra a Violência Doméstica foi outro dos oradores do painel de Sexta-Feira de manhã. Miguel Ângelo Carmo, que destacou a importância dos vários intervenientes debaterem esta temática, admitiu que o Estatuto da Vítima, em vigor desde 2015, ainda não está a ser implementado na sua plenitude.
“O que está a falhar é talvez um conjunto de posições por parte das equipas que trabalham relativamente a estes casos. Estamos a falar de todos os intervenientes; desde a notícia do facto até quando o caso acaba em Tribunal”, afirmou.
O Procurador da República realçou também que este Estatuto “falha porque não existem meios para que se consiga implementar (…) os Tribunais não têm salas que permitam a audição das vítimas”, exemplifica.
Sobre a implementação do ‘Modelo Islandês’, o magistrado refere que, apesar de essa não ser “uma realidade nacional”, já existem alguns locais “onde o conseguimos implementar”.
“Tenho uma opinião muito própria, sou magistrado e já tenho 25 anos de carreira, mas as mudanças dentro de determinados sistemas têm alguma dificuldade em ser implementadas. A responsabilidade evidentemente não é de a, b ou c, é da comunidade em geral. Agora temos de trabalhar para conseguir ultrapassar estas dificuldades porque leis, nós temos”, defende.
Miguel Ângelo Carmo considera ainda que, apesar de a vitimização secundária ser “uma realidade que diria ser inevitável”, é possível minimizar os contactos com a vítima “e fazê-los com qualidade para que o impacto da vitimização seja o menor possível. Para que a vítima se sinta minimamente compensada com o processo e que o processo sirva para ela poder recuperar melhor do trauma”.
Realçando que “cada caso é um caso”, o Procurador da República entende que “cada um deles tem de ter a resposta mais adequada possível de acordo com uma estratégia de investigação e simultaneamente, se for caso disso, de proteger a vítima (…) a detenção do agressor não significa necessariamente que o perigo tenha cessado porque esse perigo poderá advir, por exemplo, do trauma e das consequências daquilo que a vítima foi alvo”.
Miguel Carmo salienta igualmente que o acompanhamento da vítima “tem de ser feito a partir do momento em que o processo se inicia”.
“Evidentemente que tem um princípio e tem um fim. Temos de nos preocupar em dar apoio, acompanhamento e protecção durante o procedimento. Esse acompanhamento não tem de terminar necessariamente quando o processo termina, mas isso já não é uma responsabilidade da Justiça e por isso é que falo da comunidade e de uma equipa multidisciplinar”, afirma.
A finalizar, o Procurador da República sublinha um ponto fundamental: “O responsável é o criminoso, não é o sistema”, realça.
Maria da Conceição Lopes: “60 a 70% dos crimes sexuais” nos Açores têm como vítimas crianças e jovens
Em declarações ao Correio dos Açores, a coordenadora do Ministério Público da Comarca dos Açores destaca que a ligação entre as Comissões de Protecção de Jovens e o Ministério Público “está muito mais próxima”.
“Não digo que ainda não haja constrangimentos e dificuldades, existem sempre, mas não tem comparação com o que se passava há uns anos atrás”, revela.
Para Maria da Conceição Lopes “caminhamos no bom sentido, há uma maior proximidade e o Comissariado dos Açores para a Infância veio trazer uma mais valia em termos de poder ajudar e auxiliar as comissões e de poder encaminha-las, quando os casos são na área dos tribunais judiciais, para o Ministério Publico que é o principal interlocutor junto das comissões”.
A coordenadora do Ministério Público dos Açores confirma também que a grande maioria dos crimes sexuais reportados na região têm como vítimas crianças ou jovens.
“A grande maioria das vítimas são crianças ou jovens. Os dados são da Procuradoria da República da Comarca dos Açores mas que estão em consonância com os dados da PJ. A nível nacional a percentagem é exactamente muito parecida ou igual, ou seja, em 60 a 70% dos crimes sexuais e de autodeterminação sexual, as vitimas são crianças e jovens”, reforça.
Maria da Conceição Lopes admitiu a necessidade de aperfeiçoar a articulação entre as várias entidades que se debruçam sobre esta problemática e destacou a importância de encontros aquele que0 decorreu durante os últimos dias em Ponta Delgada.
“Este seminário também contribuiu para juntarmos aqui os vários intervenientes e reflectirmos sobre estas questões. A necessidade de articulação passa, por exemplo, por aproveitar os depoimentos no que diz respeito ao abuso sexual de uma criança ou de um jovem para evitar a revitimização e a repetição dos vários depoimentos. Isso é uma coisa que tem de ser feita em articulação e é possível, na minha perspectiva, proceder a uma alteração e aproveitar este momento de reflexão a nível nacional para pensarmos também alterar, no que diz respeito a este tipo de criminalidade, alguma coisa na lei”, afirmou.
A coordenadora do Ministério Público admitiu, “pese embora a justiça seja mais amiga da criança, ainda não é o absolutamente ideal e o mais eficaz”.
O seminário foi organizado pela Procuradoria da República da Comarca dos Açores em parceria com o Comissariado dos Açores para a Infância, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Luís Lobão