A prática religiosa com maior devoção durante a quaresma é a Via-sacra, que consiste em percorrer o caminho que Jesus fez, carregando a Cruz, desde o Pretório de Pôncio Pilatos, até ao Monte Calvário, meditando simultaneamente na Paixão de Cristo. Tal exercício terá tido origem no facto da Mãe de Jesus ter percorrido inúmeras vezes a mesma via, tal foi a intensa dor sentida, que lhe ficou impregnada no coração, ao acompanhar o Seu filho até à sua crucifixão, prática esta que foi aprofundada na época das Cruzadas, como que a reproduzir a peregrinação feita ao longo da Via Dolorosa em Jerusalém.
Esta meditação chegou ao Ocidente, em que os cristãos percorrem mentalmente os passos ou etapas dessa caminhada e foi sendo definido paulatinamente, chegando à forma atual, de catorze estações, no século XVI. O exercício da via-sacra tem sido muito recomendado, pois proporciona uma frutuosa meditação da paixão e morte de Jesus Cristo.
Aqui nos Açores, a partir do século XVI esse percurso da via dolorosa é feito durante uma semana por ranchos de romeiros que percorrem as estradas de S. Miguel, andando sempre com o mar à sua esquerda, parando e entrando em todas as igrejas e capelas da ilha ou como se diz nas romarias, visitando as casas de Nossa Senhora e rezando as toadas dolentes de avê-Marias infindáveis.
Esta prática religiosa que então se consolidou nesta ilha, assume uma dimensão comunitária inusitada e abrange centenas de pessoas, e crê-se que este ano sejam cerca de 2 000 homens, num movimento à volta do qual muitas famílias católicas se unem em várias freguesias para disponibilizar meios de acolhimento e pernoita, bem como prover à sua alimentação.
De acordo com alguns historiadores, a origem deste ritual está intimamente ligada às catástrofes sísmico-vulcânicas que assolaram a ilha no séc. XVI, em particular o terramoto de 22 de outubro de 1522, pelo que estamos a celebrar os 500 anos que os nossos antepassados iniciaram as romarias, agradecendo as graças recebidas durante estes anos ou pedindo a intercessão divina para algumas situações complicadas da vida.
Estes romeiros percorrem quilómetros e quilómetros a pé durante uma semana, entoando cânticos e rezando em voz alta de forma destemida, contra o vento, a chuva ou o frio, numa caminhada sofrida, mas cheia de calor humano, partilha e grande generosidade e de manifesto espírito fraternal.
Há até quem afirme que tal prática religiosa provém da iniciativa de um frei dominicano que residia em Vila Franca que após o terrível terramoto apelou aos poucos sobreviventes que se realizasse uma procissão em memória das vítimas, caminhando até uma ermida que foi lá erguida, evocando Nossa Senhora do Rosário, assegurando-se que todo este movimento laical começara desde então.
Estas romarias assumem particularidades ancestrais e intrinsecamente possuem uma mística difícil de explicar ao ponto de quem vai um ano, querer ir sempre mais e mais. Conheço até quem não possa, por circunstâncias várias ir num ano e fica pesaroso por ficar atrás, mas faz a romaria em espírito, pois sabe em qualquer hora do dia por onde anda o seu rancho e vai muitas vezes ao seu encontro.
Durante 1 semana estes homens carregam consigo apenas um saco com o essencial e vão pernoitando em casas de famílias que os acolhem, em salões de igrejas e instituições que se oferecem para receber os Romeiros. Nos anos de pandemia, os romeiros sentiram uma grande mágoa, o vazio, a tristeza, a desolação e o desalento por não saírem, mas pelos vistos o Movimento dos Romeiros de S. Miguel está mais vivo, apesar dos ranchos serem nesta retoma muito mais pequenos, mas sempre com o mesmo espírito.
Independentemente da condição social ou académica, na semana da romaria são todos iguais e não há engenheiro ou doutor, porque se esvaiam todas as diferenças culturais, e todos se tratam por irmãos. Nos últimos anos, as mulheres voltaram a associar-se às romarias dos homens, contudo quase a totalidade das femininas têm uma duração inferior a 24 horas, e apenas levam como indumentária um lenço e um terço.
A Quaresma voltou ao que era antes da pandemia e lá tive de me levantar bem cedo para ir levar os irmãos até junto da Igreja, para repartirem em direção ao nascente, sempre com o mesmo espírito de penitência e oração, que vai ecoando pela luxuriante vegetação da nossa olha ou por vales tenebrosos, sem temer nenhum mal porque a Senhora acompanha cada um.
António Pedro Costa