Seminário “Crianças e Jovens: Direitos, Acolhimento e Abuso Sexual”

Comissariado para a Infância defende criação de guia de procedimentos para defender menores vítimas de abusos sexuais

A implementação nacional de um modelo de intervenção residencial, “numa óptica de acolhimento verdadeiramente terapêutico” e a apostas na preparação e na formação de Famílias de Acolhimento foram algumas das conclusões do seminário “Crianças e Jovens: Direitos, Acolhimento e Abuso Sexual”, no que toca a uma melhor regulamentação do acolhimento de menores em risco. No que toca ao tema dos abusos sexuais, defende-se a criação de um guia de procedimentos para melhor articulação entre as entidades envolvidas nos casos de abuso sexual de menores. O seminário conclui também pela “necessidade de publicação e entrada em vigor dos diplomas regulamentadores da medida de Acolhimento Familiar e de Acolhimento Residencial no arquipélago dos Açores”. Estas e outras conclusões para melhor proteger o interesse das crianças em situações de perigo abusos sexuais foram abordadas durante o seminário, realizado a 9 e 10 de Março, no Teatro Micaelense, organizado pela Procuradoria da República da Comarca dos Açores em parceria com o Comissariado dos Açores para a Infância, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Deixando um mote para posterior aprofundamento destas conclusões, o seminário abordou os temas do acolhimento residencial de crianças e jovens em perigo, o acolhimento familiar, o apadrinhamento civil e outras formas de confiança de crianças a terceiros. Em destaque esteve também a problemática do abuso sexual a menores: a denúncia, o encaminhamento das situações de perigo e a articulação entre jurisdições, e ainda a audição e a recuperação física e psicológica da criança vitimizada. 

1º andamento: O acolhimento residencial de crianças e jovens em perigo
-Onde estamos e para onde vamos
 

1. Necessidade em Portugal de implementar um modelo de intervenção residencial, numa óptica de acolhimento verdadeiramente terapêutico que seja capaz de, durante o desejável pouco tempo da sua duração na vida de uma criança, promover as condições para a adequada satisfação das suas necessidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais, bem como para a recuperação terapêutica das suas experiências pregressas, tendo como premissa a afirmação de que não é necessário ser terapeuta para se levar a cabo uma intervenção terapêutica.

2. Pretende-se que o acolhimento com intencionalidade terapêutica, de que é bom exemplo a Casa QUOTIDIANO-CARE nos Açores, faça desconstruir a ideia de punição ou de castigo por parte da criança acolhida, o que deve ser incentivado antes do acolhimento, no próprio dia do acolhimento, na duração do seu acolhimento e aquando da saída, mostrando-se sempre disponibilidade afectiva para com a criança e respeito pelos espaços e tempos da criança, definindo-se estratégias optimizantes da sua integração social, capazes de potenciar a sua transformação interna.

3. Consciencialização de que existem inúmeros desafios com que a criança ou jovem ex- acolhido se depara, regressando a uma família que tantas vezes contínua na mesma disfunção, sendo necessário envolver a família no seu plano da intervenção, podendo e devendo a Casa de Acolhimento continuar a intervir numa lógica de apoio.

4. Constatação de que a história do acolhimento residencial de crianças em Portugal se conta através da passagem de um modelo agarantístico, protecionista e assistencialista para um modelo terapêutico, familiar e especializado onde também se dê colo, num contexto afetivo, e se trabalhe comas famílias da criança acolhida.

5. Necessidade de melhorar a vida das crianças e de suas famílias, o que será de ser uma prioridade do nosso Estado de Direito Social, prévio à necessidade de proteger as primeiras.
                                   
6. Assunção da ideia de que, no contexto do acolhimento residencial, se deve colocar o enfoque nas problemáticas da especialidade, tendo a criança direito a ser intervencionada por profissionais competentes e cientificamente habilitados  a lidar com a negligência, o maltrato infantil e o perigo em geral, tendo como sujeitos de intervenção as concretas crianças visadas, com o seu específico perfil e a sua história única.

7. Necessidade de alargar as respostas ao nível dos acolhimentos residenciais especializados, a exemplo do que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem amplamente feito, a qual já tem menos de 50% das suas crianças em acolhimento estritamente institucional, explorando o acolhimento familiar e as casas de autonomia, neste desejável rumo a uma paulatina desinstitucionalização das crianças em perigo.

8. Consciencialização de que a qualidade do acolhimento residencial de crianças  em perigo é um conceito dinâmico que não pode deixar de passar pelo real ajustamento dos recursos e serviços das Casas de Acolhimento às características e necessidades das concretas crianças que acolhem.

9. Constatação de que as nossas Casas de Acolhimento continuam a ter um caráter muito institucional, com espaços desproporcionalmente grandes, sem decoração, com quartos de dormir com lotação exagerada, com casas de banho tipo balneários públicos e com muita desarrumação e elementos perigosos, havendo, contudo, nelas um espaço de afeto e uma busca de respostas formativas ajustadas às necessidades das crianças.

10. Constatação de que muitas das nossas Casas de Acolhimento têm um quadro reduzido de pessoal, pouco qualificado e com pouca estabilidade, aí se adotando práticas apenas baseadas na evidência e sem referência a modelost eóricos orientadores.             

11. A este nível, assiste-se a uma reduzida frequência de supervisão especializada continuada relativamente ao acolhimento que em cada Casa se desenvolve, revelando-se ainda pouco envolvimento das crianças na definição e revisão doseu projeto de vida e do seu plano de intervenção individualizado.

12. Constatação de que há demasiadas transferências de crianças entre instituições, a maior parte das quais feitas sem justificação, gerando uma natural instabilidade da criança, assim tornada nómada pelo próprio sistema.

13. Defesa das melhores práticas a nível do Acolhimento Residencial:
a. Redução das colocações em Acolhimento Residencial generalista;
b. Avaliação do perfil das crianças em medida de colocação – nem todas as crianças têm indicação para o Acolhimento Residencial, sobretudo aquelas que vivenciaram experiências de adversidade na infância, geradoras de toxicidade e de verdadeiro trauma;
c. Qualificação do Acolhimento Residencial – adoção do modelo Trauma-Informed, havendo que melhorar os recursos físicos e humanos das Casas que deverão ser mais pequenas e num desejável ratio «um cuidador – uma criança», extinguindo-se a distinção entre equipa técnica e equipa educativa;
d. Adesão a práticas baseadas e informadas pela evidência científica;
e. Diminuição do tempo de residencialização de uma criança.

14. São levantados desafios aos decisores (ajustando a medida de colocação ao real perfil da criança visada), aos cuidadores (com uma mudança de paradigma e com uma maior capacitação das equipas) e à própria tutela, exigindo-lhe uma maior e melhor rede de suporte às Casas de Acolhimento e a necessária e urgente ultimação e publicação da Portaria que acabará a regulamentação da medida de colocação em Acolhimento Residencial (convém lembrar que Portugal esteve 18 anos sem qualquer regulamentação a este nível e está há22 anos sem a completa regulamentação) e nos Açores a própria regulamentação que ainda não.

15. Constatação de que as pessoas que trabalham no nosso Acolhimento Residencial são, na sua grande maioria, verdadeiros cuidadores, cuidando das dores das crianças, crianças estas que não são senão vencedores, vencendo as inúmeras dores que a vida já lhes provocou.

16. Desejo de que haja mais crianças residencializadas em Portugal que digam, em tom satisfatório: «O meu Juiz e o meu Procurador vieram cá!».

2º Andamento
O acolhimento familiar, o apadrinhamento civil e outras formas de confiança a terceiros  
– Da lei e das boas práticas

17. Conceptualização do Acolhimento Familiar como marca de uma mudança deparadigma na escolha da melhor forma de dar abrigo legal a uma criança em perigo que tem de ser separada do convívio parental, nomeadamente com idade inferior a 6 anos.

18. Necessidade de ativar a aplicação da medida de Acolhimento Familiar, mercê da implementação de campanhas de sensibilização e de captação de candidatos de abrangência mais geral, com vista ao reforço das bolsas de famílias de acolhimento, vistas estas como um perfil e nunca somente como uma mera vaga.

19. Necessidade da aposta nacional na preparação e na formação de Famílias deAcolhimento, sendo importante que elas se sintam reforçadas e reconhecidas neste seu papel, desejando-se também um eficaz acompanhamento técnico a essas mesmas famílias.

20. Necessidade de publicação e entrada em vigor dos diplomas regulamentadores da medida de Acolhimento Familiar e de Acolhimento Residencial no arquipélago dos Açores, a fim de que se possam aplicar, com substância, às crianças açorianas ou aqui residentes estas medidas de colocação de promoção e proteção.

21. Importância do trabalho das entidades de 1ª linha (entidades com competênciaem matéria de infância e juventude, doravante, ECMIJ), quer ao  sinalização, quer ao nível da implementação de medidas capazes de fazersuperar o perigo vivido por uma criança (num labor de prevenção e decapacitação desta malha comunitária), em tom de inteligência colaborativa e de                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          criatividade sustentada.

22. Constatação de que o Acolhimento Residencial irá sempre constituir umasolução para algumas – esperamos que residuais - crianças a quem não seráadequado a aplicação de medidas não institucionais.

23. Constatação preocupante de que cerca de 1000 jovens que estão em contextor esidencial têm idade igual ou superior a 18 anos e cerca de 70% de crianças a ssim acolhidas têm idade igual ou superior a 12 anos.

24. Necessidade de mais equipas de autonomia supervisionada, de maisapartamentos de autonomização, de mais casas com programas de préautonomia,de mais equipas de enquadramento do Acolhimento Familiar e deaumento da bolsa de famílias de acolhimento.

25. Necessidade de implementar eficazes campanhas de sensibilização decandidatos a famílias de acolhimento que os leve a transitar, de forma voluntária,natural e comprometida, da sua vontade inicial de acolher crianças oriundas daUcrânia para o desígnio mais universal de acolher crianças portuguesas.

26. Necessidade de os interventores no sistema terem um conhecimento com maiorprofundidade do instituto/providência tutelar cível do Apadrinhamento Civil, a fimde, percebido o seu alcance e as suas reais potencialidades, quiçá através decampanhas publicitárias eficazes, até hoje inexistentes, ser ele aplicado emmaior número de situações de crianças em perigo e não só.

27. Necessidade de continuar a perspetivar o Apadrinhamento Civil como uminstituto de afetos, ainda sem remuneração dos seus atores.

28. Necessidade de ponderação da possibilidade dos padrinhos civis poderemadotar a criança acolhida, desde que a vontade adotiva tenha sido criada apósa aplicação da medida de Apadrinhamento Civil, podendo raciocinar-se, de igualmodo, no campo da vontade da família de acolhimento que, afinal, supervenientemente, demonstre vontade de adotar a criança acolhida.

29. Constatação de que o Apadrinhamento Civil foi aplicado em Portugal, desde asua criação em 2009, pela Lei nº 103/2009, de 11 de setembro, a cerca de 180 crianças, número baixo que, não obstante, não legitima que se possa concluirque ele é um «nado morto» pois já deu a algumas crianças a família de que elascareciam.

30. Possibilidade de ponderar a figura da adoção aberta como a possível saídalegislativa para muitas crianças que podem ainda querer conviver com os laçosbiológicos, sendo tal contacto do seu superior interesse.

31. Necessidade de os tribunais e as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens,doravante CPCJ, poderem revisitar muitos dos seus processos (algunseventualmente no arquivo) com vista a transformar em apadrinhamentos civisoutras medidas tutelares cíveis ou medidas de promoção e proteçãoanteriormente aplicadas e cujo termo, invariavelmente, ocorrerá aos 18 anos dojovem sujeito do processo.

32. Consciencialização de que o Apadrinhamento Civil é hoje equiparado àsrelações jurídicas familiares, composto de uma espessura de direitos e deveresmanifestamente mais densa do que a Tutela e a Confiança Tutelar Cível aterceiras pessoas.

33. Constatação de que o Apadrinhamen-
to Civil tem uma vocação de perpe-tuidade,correspondendo a uma solução de integração familiar que é profundamentecapacitante do afilhado, tendo sido ele que deu já uma família a algumas crianças, em número que, não sendo elevado, tem a suficiente dimensão paranão se considerar esta figura como condenada à ineficácia e ao insucesso.

3º Andamento
O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
– A denúncia, o encaminhamento das situações de perigo e a articulação entre jurisdições
 
34. Defesa da ideia de que as necessidades complexas de criança vítima de abusossexuais não se esgotam na investigação e no encaminhamento para apoio psicológico, assumindo-se que o abuso sexual de uma criança é umaexperiência de elevado potencial traumático, trauma esse que não termina como abuso, ocorrendo também com a própria intervenção da investigação e daatividade judicial potenciada pela longevidade do processo.

35. Constatação da importância da articulação e cooperação entre os diferentesplanos de intervenção, investindo-se numa intervenção multissetorial embenefício da investigação e evitando a revitimização e a retraumatização (existem mesmo estudos que exibem que as intervenções iniciais imediatas auma situação de abuso serão determinantes para definir a colaboração dacriança com o processo).

36. Consciencialização de que o trauma numa criança abusada não decorre apenasdos atos sexuais de que foi vítima mas também da sua perceção relativamenteàquilo que lhe aconteceu e àquilo que lhe poderá acontecer em termos sociaise judiciários, havendo sério risco de ser revitimizada pelo próprio sistema deapoio: múltiplas entrevistas, sendo a média em Portugal de 8, atrasos nainvestigação, falta de acesso a terapia e apoio especializado, culpabilização da vítima, desestruturação familiar, vivendo a vítima o paradoxo de, por um lado,tentar esquecer o passado e, por outro lado, simultaneamente, ter de lembrarcada pormenor da experiência.

37. Constatação de que traumatizações múltiplas exacerbam sintomas e diminuem adesão à terapia.

38. Defesa da aplicação do conceito de Trauma Informed intervention, através da criação de um espaço físico onde a criança possa ser bem ouvida, numaambiência de segurança para si.

39. Defesa da adesão pelo nosso País ao modelo Barnahus, que nos chega daIslândia, concentrando-se numa só casa os pilares da proteção, da justiçacriminal, da saúde física e da saúde mental, em processo inicialmente piloto.

40. Constatação dos seguintes constrangimentos nacionais a este nível: ausênciade modelo de intervenção, com grande diversidade de práticas; inexistência dediretrizes para a intervenção; escassez de formação de profissionais de 1ª linha; desvalorização da necessidade de intervenção especializada; sempre o capital/financiamento.

41. Realce dado à intervenção hábil do Comissariado dos Açores para a Infância, assente numa lógica de bem capacitar para melhor intervir, com intensa ofertaformativa, designadamente na área do abuso sexual.

42. Constatação da existência, nomeadamente nos Açores, de constrangimentosnesse circuito de intervenção do sistema de promoção e proteção e do sistemapenal: a existência de investigações paralelas da parte das ECMIJ e CPCJ, oque compromete o esforço de redução ao mínimo da quantidade de pessoascom contacto com a criança para falar sobre a situação; o incumprimento daparticipação imediata ao Ministério Público/Polícia Judiciária, a condiçãogeográfica dos Açores (e aqui o tempo meteorológico é um ator do sistema!), otempo decorrido entre a reação das várias jurisdições no que tange àsdenúncias, investigação do crime e intervenção da CPCJ, e a ausência de guiade procedimentos e de articulação entre ECMIJ, CPCJ, Polícia Judiciária eMinistério Público, propugnando-se, assim, a criação nos Açores de guias deprocedimentos de articulação entre o sistema protetivo e o sistema penal emsede de atuação sobre o abuso sexual de crianças.

43. Defesa de que a melhor forma de proteger a criança vítima de crime sexual éperseguir criminalmente o seu agressor, mediante a sua detenção e sujeição amedida de coação.

44. Defesa de que se deve salvaguardar que a criança permaneça no seu ambientee que a sua proteção não seja sempre executada mediante o seuencaminhamento para junto de familiares e de estruturas de acolhimento,devendo antes ser o agressor o afastado.

45. Defesa de que, somente após a abordagem da Polícia Judiciária no âmbitocriminal, estando assegurada a recolha da prova e a detenção do agressor, éque deverá a CPCJ intervir junto da família, no âmbito do artigo 94º da Lei deProteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), tudo sem prejuízo daaplicação do procedimento de urgência do artigo 91º do mesmo diploma.

46. Afirmação de que nunca é demasiado falar de pessoas e de direitos humanos,quando estão em causa vítimas crianças e jovens.

47. Necessidade de generalização da ideia de que as crianças devem ser ouvidas sem declarações para memória futura, reduzindo ao mínimo as situações em que ela é reinquirida em sede de julgamento criminal, assim se ativando o Estatuto da Vítima e relativizando, pelos melhores motivos, o princípio da imediação daprova.

48. Defesa da ideia de que no processo criminal as perguntas devem ser colocadasà criança por profissionais qualificados e habilitados para conduzir entrevistasforenses de crianças vítimas de abuso sexual, não deixando o Juiz de presidir àdiligência.

49. Necessidade de compatibilização hábil entre a presunção de inocência do arguido e a presunção de vitimização da criança abusada.

50. Constatação de que as instalações do Ministério Público, em particular, e dostribunais, em geral, ainda não obedecem, em termos de infraestrutura, a todasas recomendações internacionais e regras legais, no que tange ao setting para a audição da criança, assinalando-se, contudo, nos últimos tempos, uma grandemelhoria nesse particular.

51. Defesa da desnecessidade de cumprimento da advertência do 134º, nº 2, doCódigo de Processo Penal, quanto a crianças menores de 12 anos.

52. Defesa da ideia de que a criança não deve ser acompanhada por várias pessoasem termos de «agente de suporte», devendo antes manter-se sempre a mesmapessoa como sua pessoa de referência.

53. Promoção do direito de audição e participação da criança no processo e de observância de todos os mecanismos consagrados para tornar a sua participação no processo child friendly, p. ex., em termos de configuração dosespaços que a recebem, de observância do dever de lhe dar a conhecerpreviamente esses espaços e de preservação da sua intimidade e reserva, designadamente pelos órgãos de comunicação social.

4º Andamento
O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
– A audição e a recuperação física e psicológica da criança
 
54. Realce dado à Estratégia Regional de Prevenção e Combate ao Abuso Sexualde Criança e Jovens dos Açores, criando uma rede de prevenção criminal e deapoio às vítimas, bem como intervenções protocoladas, assentes na figura do«agente de suporte» e em programas de reabilitação para jovens e adultosagressores.

55. Alusão à necessidade, no âmbito da prevenção de abusos sexuais, de saber ler novos riscos que passam, por exemplo, pelo fácil acesso das crianças apornografia infantil através dos seus telemóveis e computadores.

56. Necessidade de intervir sobre os adultos que foram crianças e vítimas de abuso sexual, tantas vezes com tardias verbalizações sobre o que lhes aconteceu no passado.

57. Consciencialização da prevalência do abuso intrafamiliar, sendo praticado poralguém próximo da criança, recorrendo a processos de grooming, e num contexto em que esta última se sente segura.

58. Constatação de que existem múltiplos fatores que impedem a revelação do abuso sexual, ocorrendo um amplo impacto desta vitimação.

59. Constatação da existência de muitos fatores que podem influenciar otestemunho de uma criança nos processos judiciais e não administrativos quea envolvem (fatores externos e internos, anotando-se que a fantasia infantil sópor si não deve descredibilizar o testemunho da criança).

60. Defesa da ideia de que a Psicologia pode ajudar a Justiça na perceção e apreciação da credibilidade do depoimento de uma criança, enquanto auxiliar do Juiz, assente que na avaliação dessa credibilidade devem ser ponderadasas características de personalidade do depoente, a sua motivação e a existência de contradições ou inconsistência do testemunho.

61. Constatação da existência de inúmeros fatores de vitimação secundária que são provocados pela intervenção dos próprios sistema de proteção e sistema penal - haverá que evitar a vitimação secundária após a revelação do abuso sexual antes, durante e depois da intervenção judiciária, apelando-se a uma natural e desejável harmonização entre as várias decisões com base nas informações do sistema familiar, escolar, comunitário, de promoção e proteção, hospitalar, policial, médico-legal e forense, e a uma consciencialização de que é sempre desejável um depoimento sem dano, garantindo um verdadeiro modelo de governação integrada na justiça e no sistema protetivo num sentido lato.

62. Natural crítica à discriminação do depoimento da vítima em razão da idade, devendo ambos os depoimentos (do agressor e do agredido) ser valorados pelo sistema judicial em pé de igualdade.

63. Reconhecimento de que a audição da criança deve ser presidida por magistrado, mas conduzida por profissional especializado, conforme sugerido nos considerandos do regulamento da UE 2019/1111, sendo a mesma obrigatória sob pena de a decisão tomada não poder ser reconhecida nos outros Estados.

64. Assunção da ideia de que a criança, além de sujeito de direitos, é um sujeito processual que deve ter uma intervenção direta nos seus processos, muitas vezes através do seu próprio advogado ou patrono.

65. Necessidade de distinguir a diligência judicial com vista a apurar a opinião dacriança («a audição da criança»), sem contraditório, e a diligência instrutória com vista ao apuramento de factos («tomada de declarações à criança»), essa naturalmente sujeita ao contraditório – daí defender-se, nesta sede, que será apenas de exigir a presença de advogados na segunda destas diligências (aoabrigo do artigo 5º, nºs 6 e 7, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

66. Necessidade de adoção de linguagem clara e acessível aquando do contacto com uma criança, criando-se material explicativo adequado.


Epílogo

Enquanto Criança:
- a ter de ser acolhido, exijo um melhor acolhimento residencial;
- exijo uma FAMÍLIA, quer lhe chame biológica, de origem, adotiva, família de acolhimento ou apadrinhamento civil.
Essa é a minha quimera.
A mesma que me leva a acreditar que tenho futuro, mesmo depois do mais profundo e indecente dos toques corporais de que fui vítima, crendo que há luz depois do breu e que há colos protetores depois da desdita.
Porque acredito nas coisas simples, no alfabeto dos afetos que deve comandar o nosso futuro enquanto Humanidade.
A mesma simplicidade descrita de forma tão sublime por João Luís Barreto de Guimarães, o nosso Prémio PESSOA 2022:

«Se amanhã
vires um miúdo na calçada portuguesa
(bicos dos pés no calcário
tentando evitar
basalto),
impondo-se o desafio de não
poder pisar cor preta,
já tens aí o poema».

                             *

Quando eu voltar a ver-te, vou agarrar o tempo todo de uma vez só…
Quando todos nos voltarmos a ver, acreditamos que alguma coisa há-de ter mudado.
Não esqueçais: estamos a pisar terreno sagrado!
Agora, ide e passai palavra!
Porque…

 

 


«Com delicadeza
abrir as gavetas
que guardam
as palavras de seda.
Deixá-las sempre
ao alcance
de um sopro,
prontas para o voo,
para o ouvido,
para a boca.
Palavras de seda
são como borboletas
douradas
quando pousam
no coração do outro»
(Roseana Murray

 

Paulo Guerra e Rita Sousa
 

                     

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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