Num mundo cada vez mais urbanizado, ruidoso e apressado, é natural, por vezes, alguém considerar voltar às raízes, e mudar para uma vida mais sustentável e em contacto com a natureza. Foi o caso de Inês Valente Milagres, amante da natureza, ilustradora e artesã, formada em Design, que em 2016 decidiu mudar-se para as Flores. Nesta ilha de natureza selvagem e de falésias onde mergulham quedas de água, Inês encontrou uma terra fértil, não só para o crescimento de cultivos, mas também para o despoletar de ideias e criatividade, momentos de reflexão, interpretação da natureza e projectos com a comunidade. Como filosofia de vida, rege-se pelos pilares da saúde, sustento e sabedoria, e respeito pelos ciclos e pausas da natureza. Está a desenvolver um projecto para partilhar essa filosofia de vida e a partilha de ofícios tradicionais e práticos, que estão a perder-se nos dias de hoje - como o cultivo da terra, a costura, a fermentação – com o intuito de fomentar práticas mais sustentáveis entre a comunidade.
Cresceu rodeada de quintais e hortas, em Leiria, ao lado dos avós, mas só se apercebeu do bem e falta que esse contacto com a natureza lhe fazia quando foi estudar para as Caldas da Rainha e onde viveu, pela primeira vez, num apartamento, conta Inês. Na cidade procurava o verde, que não era suficiente. A vontade de viver na natureza era cada vez maior, tendo depois se mudado para uma pequena aldeia perto de Óbidos. Quando visitou os Açores, no âmbito de um trabalho de ilustração sobre a planta silvestre serpentina, não se queria ir embora. Em 2016, foi-lhe oferecida uma viagem de férias às Flores e ao Corvo. “Quando cheguei às Flores, para mim foi muito forte, foi pressentir a natureza de uma forma muito mais genuína e muito menos intervencionada, do que há no continente. Foi espontâneo”, descreve Inês, sobre a sua primeira impressão daquela ilha. Voltou ao continente e começou logo a fazer as malas e a preparar a mudança para os Açores, onde vive desde Abril de 2016.
Inês Milagres encontrou nas Flores o ambiente perfeito para desenvolver os seus projectos e viver de uma forma mais sustentável. No seu recanto, consegue energia através de painéis solares e baterias, conta, e está a retomar o cultivo dos seus próprios alimentos, que teve de interromper na maternidade: “A minha visão é ter cada vez mais comida a crescer. Fazemos os possíveis de ser o mais sustentáveis possível. Primeiro, acredito que isso não devia ser uma excepção, deveria ser a regra da vida, porque a natureza é sustentável”, de acordo com Inês, que tem observado um afastamento da sociedade em relação ao contacto e harmonia com a natureza e os seus ciclos.
Na área do artesanato, Inês, artesã certificada pelo Centro de Artesanato e Design dos Açores, trabalha com vários materiais: madeira, lã, linho nacionais e ainda fibras. No seu atelier desenvolve estes trabalhos, local que pretende abrir ao público, a quem queira apenas visitar ou até colaborar consigo. Conta que fez uma proposta de desenvolvimento dos ciclos da lã e do linho na ilha das Flores, a que se vai continuar a dedicar.
Na ilustração, área em que já trabalha há muitos anos e com trabalho publicado, encontrou o seu “código de expressão”. Inês considera que o desenho e ilustração são linguagens universais, que podem diluir barreiras. Utilizar aguarelas e desenhos a lápis são as suas técnicas de eleição e onde é “mais feliz”.
“É uma ilha que tem muito para dar”
“As Flores são especiais em tudo”, considera a ilustradora, que quando se mudou para aquela ilha, ficou surpreendida pela “velocidade inacreditável” com que as plantas, flores e vegetais cresciam todos os dias. “Estava a ser uma novidade, era estar num oásis, num Eden”. Nos Açores, fez crescer “uma das melhores hortas” que já alguma vez teve. Foi também nas Flores que a artesã vi um lugar propício para desenvolver as suas actividades artísticas, como o artesanato e a ilustração, e ainda comtemplar a natureza. Viver na ilha dava-lhe muito tempo para se “inspirar verdadeiramente pelos ciclos e pela natureza”, filosofia que já seguia no continente, mas confessa que o sente mais frequentemente e fortemente agora, a viver nos Açores, onde sente os “elementos de uma forma muito forte”.
Inês vê na sua nova casa “uma ilha que tem muito para dar”, mas que precisa de ser cuidada. Com uma filosofia de vida de viver em respeito pela natureza e em harmonia com os seus ciclos e pausas, para Inês, “a ilha das Flores é muito especial, porque é genuinamente ligada à essência, à terra, de uma forma rural”. “A ruralidade não é nenhuma vergonha”, expõe, considerando que a ilha das Flores não precisa, necessariamente, evoluir através de uma maior urbanização, como acontece com algumas outras ilhas: “Se calhar tem de ser evoluída no sentido de rural, no sentido em que a terra e a lavoura podem ser realmente o sustento da ilha”.
Partilhar os saberes tradicionais
em comunidade é um projecto de Inês
Também por ter sido escuteira durante muitos anos, explica, dá especial foco aos projectos em comunidade e actividades ligadas à colunária e às origens, “e por isso à terra”. Nas Flores, continua a promover actividades nesse sentido.
No seu novo projecto que está a preparar, “Quotidiano Integral Living”, pretende partilhar a sua filosofia de vida “integral”, de agradecimento por existir e respeito aos ciclos e pausas da natureza, e promover a troca de conhecimentos, entre a comunidade, das artes e ofícios práticos e “intemporais”, em prol da sustentabilidade, como o cultivo da terra, o fabrico de pão, a costura, o tear, as fermentações naturais, a construção dos próprios utensílios de casa, a produção de sabão, o crochê, “saberes intemporais”, que não são antigos e ultrapassados, mas “necessários ainda hoje”. “O Integral Living vem integrar, de uma forma prática, vivências que nos ajudam a ter um quotidiano melhor, mais sustentável”, explica Inês, em poucas palavras o projecto “é trazer os saberes intemporais para a vida e para a partilha”. Será um projecto em comunidade, explica a artesã, mas “honrando também a individualidade”.
O projecto vai também trazer a filosofia de que o trabalho é importante, mas não no sentido de obrigar a uma produtividade exaustiva ao ponto de nos levar ao esgotamento, há que também criar momentos de “celebração” da vida e do que a natureza nos dá, de acordo com Inês. “Estou também a tentar respeitar isso em mim, porque durante muitos anos trabalhava loucamente todo o ano. Quando ganhei essa lucidez percebi que eu não estava a respeitar uma coisa básica da natureza – a pausa – nenhuma árvore dá frutos o ano todo, nenhuma árvore está sempre igual o ano todo, e eu queria estar”.
Mariana Rovoredo *