Associação Supera_te quer ter serviço em Rabo de Peixe para ajudar vítimas de violência doméstica

“A casa deveria ser o lugar mais seguro, mas para muitos não é. É o mais perigoso”. É para pôr fim a este problema que Cátia luta, e a esta batalha juntou-se também Bruno Lavrador. A Associação tem como valências não só a prevenção e consciencialização junto dos jovens, mas também a de preparar, através de um atendimento personalizado, as vítimas para que estas se consigam libertar da situação de violência doméstica. Re-educar os intervenientes nos casos de violência doméstica, com especial foco na auto-responsabilidade da vítima, para que não haja reincidência, é um aspecto muito importante que a Supera_te tem em conta, explica Cátia Silva, Presidente executiva, e Bruno Lavrador, Director operacional e tesoureiro.
A Associação foi formalizada a 26 de Setembro de 2022, a nível nacional. O núcleo de São Miguel nasceu a 28 de Dezembro de 2022, pelo “amor” que Cátia sente por São Miguel e pela necessidade de prevenir este problema na ilha. Desde então, o núcleo tem realizado várias acções de sensibilização em várias escolas de São Miguel. A associação tem já colaborado com a PSP de Rabo de Peixe, juntas de freguesia e escolas. De acordo com Cátia, as crianças de São Miguel estão muito “sozinhas” e carentes de amor.
A Associação dispõe de página no Facebook, de website em https://www.superatesaomiguel.pt/ e pode ser contactada através do 927 797 729, ou do email apoio@superatesaomiguel.pt.

Correio dos Açores - A Associação Supera_te tem um núcleo no continente e um núcleo em São Miguel...
Cátia Silva (Presidente executiva) – Sim. Temos vários núcleos no continente, e aquele que estamos a dar mais ênfase agora é o de São Miguel. A Associação abriu portas no dia 26 de Setembro de 2022, e como sou muito apaixonada pela ilha de São Miguel - também já tinha o programa cá, a nível da rádio, com a rubrica “Gps do amor”- e então deixei uma faísca de virmos apostar em São Miguel e fazer um trabalho muito massivo nesta ilha.

A 28 de Dezembro de 2022, surgiu o núcleo de São Miguel. Porquê aqui?
Foi o amor que me trouxe à ilha. Entretanto comecei também a organizar grupos para virem a São Miguel, não em viagem, mas numa experiência que tem o foco de trazer as pessoas até um ambiente muito mágico. Como costumo dizer, esta é uma ilha mágica, porque é realmente um sítio em que as pessoas se podem reencontrar. Faço um trabalho com a ilha e com essas pessoas.
Surgiu a partir daí. Eu disse sempre que, para mim, o maior investimento e a maior incisão seria São Miguel, porque eu queria mesmo transformar esta ilha contra a violência doméstica.

A ideia deste projecto surgiu da Cátia?
Foi dos dois, a nível de criar a associação foi mais do Bruno. Há já 10 anos que trabalho com vítimas de violência doméstica. Na altura, na área da nutrição, ajudava as pessoas a perder peso e as senhoras, por norma, eu notava que tinha muito a ver com os relacionamentos abusivos que viviam nas relações e tudo acabava por se encaixar. Os anos foram andando e fui percebendo que era apaixonada por isto, que fazia parte da minha história de vida, porque também vivi uma relação abusiva durante sete anos. Na altura em que saiu o meu livro “Na Cama em que te Deitas”, lançado em 2021, surgiu a ideia de termos uma comunidade económica em que as pessoas pagassem simbolicamente uma quantia e fossem ajudadas por mim, com o apoio logístico do Bruno. O Bruno sempre teve esta visão de que tínhamos de começar uma associação, até que um dia eu percebi que não podíamos ser só nós e tínhamos de crescer.

Pela sua experiência, a violência doméstica é um problema muito grave em São Miguel?
Sim, há muita violência doméstica. Temos de perceber que há aqui também muita coisa junta com a violência doméstica. A violência doméstica pode ocorrer só mesmo pelas carências que existem, familiares, financeiras, emocionais, a nível também de estrutura emocional que a família muitas vezes não tem, também a nível financeiro que muitas vezes as famílias não têm. Também temos depois a outra parte, que são as dependências das drogas e do álcool, que fazem também que haja aqui outra parte da violência doméstica. Acredito que aqui na ilha temos algo mais difícil do que no continente, que é muita violência doméstica escondida. No continente já se fala muito mais abertamente do que aqui se fala sobre esta temática.

A Cátia sentiu na pele esta violência, depois também fez formações para perceber  esta situação pela qual passou.
Eu vivi um relacionamento de sete anos, de violência doméstica. Sai com dois filhos dessa relação, tenho os “filhos da violência doméstica”, por isso é que quando faço o trabalho nas escolas eu ensino sempre que não tem só a ver com a superação, tem também a ver com a prevenção. Normalmente achamos que isto não tem a ver connosco quando nós não vivemos relacionamentos abusivos, mas basta que tenhamos filhos na escola a conviver com filhos da violência doméstica, e isto já passa a ser um assunto nosso.
Consegui fugir e reerguer a minha vida e no fundo nunca pensei fazer esta área como minha área profissional. A primeira fase que fiz foi estudar para mim, porque eu queria superar e perceber como é que eu tinha entrado num relacionamento abusivo, que eu não percebia. Não tinha visto o meu pai maltratar a minha mãe, muito pelo contrário, também nunca tinha visto a minha mãe desrespeitar o meu pai. Então eu não era resultado da violência doméstica e ter repetido o padrão. Mas na verdade, se bater certo com aquilo que a ciência nos diz, eu repeti realmente um padrão intergeracional, porque a minha avó tinha sido vítima de violência doméstica. Fui à procura de perceber porque é que eu tinha entrado num relacionamento assim.

Qual foi o contacto que o Bruno tinha com a violência doméstica? Porque se juntou a esta causa?
Bruno Lavrador (Director operacional) - Não me é próxima porque no meu meio familiar nunca aconteceu. Claro que em termos de vizinhos e amigos sempre foi um problema que sabia que existia, mas não se falava. Quando eu soube da história da Cátia – já temos uma amizade de há muitos anos que já vem do tempo de escola – e quando soube que ela estava a pensar em escrever um livro, desde o início dei-lhe sempre a mão e tentei ajudar no máximo possível para seguirmos em frente com esta missão.

Que actividades têm realizado em São Miguel?
Cátia – Para já, temos feito palestras. Neste momento andamos em Rabo de Peixe porque assinamos um protocolo com a Junta de Freguesia de Rabo de Peixe e com a Escola Profissional da Ribeira Grande e estamos a começar a fazer sensibilização nas ruas. Hoje estivemos pelas escolas, que fomos conhecer. Estamos a trabalhar em parceria com a PSP de Rabo de Peixe. Temos uma missão muito clara: queremos humanizar contra a violência doméstica. Isto leva-nos a uma aproximação com a população, tem de haver aqui um frente-a-frente, estar e falar com as pessoas. Não dá para estar sentada numa secretária à espera que as pessoas apareçam, então temos de fazer sensibilizações nas escolas, não só para os alunos, mas também fazemos para os pais. Já estamos a preparar o próximo ano lectivo para trabalhar a intervenção sobre a violência no namoro e sobre a violência doméstica. Temos andado nas ruas. No fundo, é aquilo que gostamos.


Nestas acções com as crianças e jovens, qual é a abertura deles para este tema?
Sinto que há uma falta muito grande nesta ilha – e é aquilo que pertence à nossa missão, acho que não viemos aqui por acaso – sinto que cada vez mais falta muita humanização. As crianças estão muito sozinhas. Estão a ser resultado das experiências adversas do contexto familiar que estão a viver. Há muita necessidade de amor. Acho que levamos muito amor, mas também muita formação e visão de um futuro melhor do que aquilo que elas imaginam. Às vezes acho que as crianças já estão muito desacreditadas, de muita coisa, e que este é realmente o perigo que esta ilha está a passar: quando uma criança desacredita, como é que um adulto não há de desacreditar. Acho que tem sido muito positivo.
Bruno – Uma das coisas que tenho visto: há mais recepção, até das próprias crianças, apesar das dificuldades e de por vezes as portas estarem fechadas para elas. Podem estar fechadas, mas, no interior delas, estão abertas para receber a nossa entrada e é isso que tem estado a acontecer. As crianças recebem-nos bem e depois, atrás delas, trazem os pais.
As entidades têm tido uma preocupação com a consciencialização para este problema?
Cátia – Acho que não. Acho que este tem sido o nosso maior desafio. Fala-se muito do tema, há muita informação, mas há pouca vontade de realmente fazer acontecer e há pouca formação dada nesta área. Acho que se nós não começarmos por quem realmente está nestas entidades públicas e privadas de maior escala, dificilmente vamos mudar alguma coisa na população. Acho que há muitos investimentos, mas também começo a achar que interessa pouco mudar, realmente, este flagelo. Em todo o lado, mas aqui em São Miguel não tem sido excepção.

Um dos focos da Associação é a prevenção. Para além disso, a Associação apoia, na prática, as vítimas? De que forma?
Sim. A nossa missão passa por três vértices: queremos estar na prevenção, no suporte de apoio à vítima e na formação da superação – formar as vítimas para como é que elas saem destes relacionamentos, como é que se desapegam destes relacionamentos e como é que constroem uma vida diferente. É um triângulo, porque acreditamos que ele faz com que consigamos chegar a toda a população e tenhamos realmente resultados reais daqui a uns tempos.

Têm recebido muitos pedidos de ajuda cá na ilha?
Cátia – Temos tido pedidos de ajuda e por incrível que pareça temos pedidos de ajuda por parte de crianças e jovens nas escolas. Acho que hoje, o que aconteceu na escola onde estivemos, foi um pedido de ajuda. As crianças do 1.º ciclo não dizem “eu preciso de ajuda”, mas o abraçar da menina que conheci hoje e o olhar a dizer “obrigada”, para mim, foi claramente um pedido de ajuda. Acredito que com o tempo e divulgação cada vez vai chegar a mais pessoas.
No mês passado tivemos seis novos casos. Foram pais que vieram através dos jovens a quem demos palestra na escola. Conseguimos chegar às crianças e aos jovens, como também conseguimos canaliza-los, através dos jovens, para as nossas redes sociais. É muito importante.

Quando recebem estes pedidos de ajuda, o que é que fazem?
O nosso trabalho é muito personalizado. Temos um método de trabalho, como qualquer outra entidade. Todas as pessoas que trabalham connosco e fazem contacto directo com as vítimas são técnicos de apoio à vítima, que é uma formação especifica, a TAV, que decidimos que toda a equipa tinha de ter. Acreditamos que é algo que falta muito nas entidades que lidam com estas pessoas. A nossa equipa tenta perceber como é que a vítima está, porque de nada vale dizer à vítima para fazer a denuncia se ela não estiver preparada para o fazer. Temos um passo a passo, temos uma metodologia, mas temos de personalizar e entender realmente como está a pessoa para depois então poder ajudá-la naquilo que é a orientação e suporte para este tipo de processo.


A Associação tem um espaço na Casa do Povo de Porto Formoso e em Rabo de Peixe. Estão a trabalhar a partir daí?
Cátia - Estamos a começar a trabalhar a partir daí, estamos a organizar as coisas.
Agora quando assinamos o protocolo com a Junta de Rabo de Peixe, ficamos com um espaço dentro da vila para operar. Em final de Outubro do ano passado, mandamos emails para todas as juntas de Freguesia da Ribeira Grande. Há pouco tempo, o senhor Presidente Jaime Vieira, respondeu-nos, marcamos uma reunião, tivemos uma excelente sinergia e tomamos a decisão que o nosso projecto seria abraçado por eles, juntamente com a Escola Profissional da Ribeira Grande, mas para isso precisávamos de um espaço para podermos operar a partir dali e dar algum apoio.
Vamos ter um serviço exclusivo a nível da Associação, que é as vítimas de violência doméstica dirigirem-se ao nosso espaço, através da nossa linha, para onde as pessoas podem ligar e fazer a sua denúncia connosco e partilhar o que estão a viver. Automaticamente já não vão necessitar de estar tanto tempo na esquadra de Rabo de Peixe. A vítima, quando chega até nós, deposita tudo, ela sente que ali está a desabafar. Enquanto que muitas vezes quando vai à esquadra ela já sente que aquilo é sério, não é só um desabafo. Então acabamos por ter informação que muitas vezes não chegaria até eles. Este serviço vai ser diferente: a vítima liga-nos e depois faz o seu depoimento connosco, partilha as coisas connosco. Vemos em que grau a vítima está a nível de violência e a seguir temos o relatório para enviar à esquadra, quando a vítima apresentar queixa.

Quais são os planos da Associação para este ano?
Começamos já a fazê-lo, mas queremos fazer uma campanha, até ao final do ano, muito massiva contra a dependência emocional. Porquê? Porque quando há uma vítima que diz que não sai do relacionamento por causa dos filhos, por causa de dinheiro, por causa disto e daquilo, eu pergunto sempre: “Se o seu companheiro morresse hoje, conseguiria ou não dar a volta à sua vida?”, e toda a gente conseguiria dar. Quando há um relacionamento abusivo, no fundo, essa pessoa já morreu para nós, só que a dependência emocional mantem-nos nas desculpas diárias que damos para não sair desses relacionamentos.
Quero ver se existe oportunidade de mais câmaras e juntas de freguesia nos abrirem as portas e de nos ajudarem a erguer uma acção massiva contra a dependência emocional, através de workshops, formações. Temos mesmo de lançar acções de formação, aulas, para que as pessoas possam ter acesso a isso. Mas o maior impacto que nós queremos realmente ter é continuar esta campanha e ter a linha telefónica disponível que dê uma resposta imediata, personalizada e humanizada. Espero que o poder político e as entidades públicas comecem também a mudar a mentalidade e que nos abracem genuinamente com amor e carinho como nós estamos a abraçar aqui, para que consigamos, juntos – porque isto não tem cor partidária, género, idade, tem somente uma coisa: isto é um problema social e precisa de ser abraçado por todos para conseguirmos resolver o melhor possível. A nossa campanha da dependência emocional tem mesmo que ser abraçada pela ilha num todo, para falarmos, numa só voz, contra a violência doméstica. Os números da violência no namoro são assustadores e são o reflexo daquilo que existe dentro da casa. A casa deveria ser o lugar mais seguro, mas para muitos não é. É o mais perigoso para muitos. Outros tantos estão descansados a achar que o problema não tem a ver com eles, mas se não fosse um problema social, não seria um crime público. Precisamos de reflectir muito e mudar mentalidades.

Que mensagem gostava de enviar às vítimas de violência doméstica que estivessem a ler esta entrevista?
Gostava de mandar duas mensagens. Primeiro, que quando nós questionamos o relacionamento que estamos a viver já é sinal de que algo não está bem e muito provavelmente estaremos num relacionamento abusivo. A outra mensagem é que a violência doméstica não é sentença para toda a vida. A pessoa pode decidir, a qualquer momento, mudar a sua vida, por muito que isso custe e que se tenha de passar dificuldades e de nos tornarmos vulneráveis. Sentimos vergonha de pedir ajuda, de dizer que não estamos bem e que não fizemos uma escolha correcta no parceiro (a) que escolhemos, mas é preferível passar por esse momento e conseguir depois criar uma vida extraordinária.

Que mais gostariam de acrescentar?
Se eu puder mandar uma mensagem: que as entidades públicas, juntas, câmaras e que quem está no poder político perceba que se não começar pelo exemplo de cada um deles e pela força de vontade real de fazer a diferença neste flagelo, não vai ser nenhuma associação que vai conseguir fazê-lo. Isto tem de ser um casamento perfeito entre todos nós.
                             

Mariana Rovoredo

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Autor: CA

Categorias: Regional

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