Correio dos Açores - Que relevância atribui ao Dia Internacional do Enfermeiro?
Ruben Lopes (Enfermeiro) - A comemoração deste dia é um reconhecimento da comunidade internacional para com a nobre profissão e uma forma de realçar a sua relevância para a sociedade.
Por que razão escolheu ser enfermeiro?
Acredito que seja possível sentir o chamamento e ser-se enfermeiro por vocação. Mas, no meu caso, não foi algo flagrante desde logo. Eu tinha um amigo enfermeiro, a quem acompanhava enquanto estava a tirar o curso e, aos poucos, fui-me identificando cada vez mais com aquela prática. Certo fim-de-semana, este amigo levou-me a acompanhá-lo num turno e foi aí que cheguei à conclusão que aquilo era o que eu queria mesmo fazer. Embora considere que não tenha nascido para ser enfermeiro, acredito que é possível seguir a profissão sem ser por vocação. Ou seja, pode-se aprender.
O que é que a profissão representa para si?
A possibilidade de ajudarmos o próximo na promoção da saúde e no tratamento da doença.
Considera que especializar-se em alguma área é importante, nos dias de hoje, no ramo da enfermagem?
A especialização é, sem dúvida, muito importante. É difícil ser-se bom a fazer tudo e é mais fácil ser-se muito bom a fazer-se poucas coisas. No caso da enfermagem, o aparecimento de diversas especialidades veio permitir que o enfermeiro se pudesse dedicar a determinadas áreas.
Há muitas especialidades em enfermagem sobejamente conhecidas pela forma como acabaram por influenciar positivamente a saúde da sociedade. Por exemplo, a enfermagem obstétrica deu um importante contributo na diminuição da mortalidade infantil. Este assunto está novamente em voga e merece a nossa melhor atenção, visto que estamos numa altura em que há menos crianças a nascer.
Considero que todas as pessoas deviam tirar uma especialização. Não defendo terminar a licenciatura e escolher imediatamente a especialização. Primeiro, deve-se ter alguma experiência profissional para que se perceba quais são as áreas de eleição e, posteriormente, direccionar para aí o seu foco e desenvolvimento profissional.
No seu caso, é enfermeiro de bloco operatório…
Tirei uma especialização médico-cirúrgica e, dentro da própria especialização, acabei por me focar na parte cirúrgica, assim como na gestão.
O meu desenvolvimento profissional, nos últimos 19 anos, foi na área da instrumentação do bloco operatório. No bloco operatório existem três subgrupos de enfermeiros, nomeadamente o enfermeiro da anestesia, que costuma assistir à parte anestésica dos procedimentos, o enfermeiro instrumentista e o enfermeiro circulante. Os últimos dois focam-se maioritariamente na área da cirurgia e são ambos muito relevantes no desenvolvimento das operações.
Nos últimos dois anos, tenho estado mais focado na parte da gestão ou coordenação do bloco operatório.
Como é o dia-a-dia de um enfermeiro do bloco operatório?
Do ponto de vista da gestão e de uma forma muito redutora, o meu dia-a-dia baseia-se na afectação dos recursos humanos às diferentes salas e na adequação das capacidades de cada um dos elementos para determinadas cirurgias. No fundo, estou encarregado da logística associada a cada cirurgia, que inclui os materiais, entre outros.
No que diz respeito aos enfermeiros que estão dentro do bloco operatório, estes são responsáveis pelo acolhimento dos doentes, por fazer um questionário para saber quais são os antecedentes de saúde, isto é, se tem alergias ou outra informação relevante para o procedimento. Além disso, é preciso assegurar todo o processo de gestão logístico, que inclui preparar o material para a cirurgia, de modo a garantir que não falte nada.
No intra-operatório, as pessoas têm de ser detentoras dos mais diversos conhecimentos técnicos para poder desempenhar as diferentes funções, tanto de enfermeiro circulante como de instrumentista.
O recobro ou pós-operatório, fica normalmente a cargo do enfermeiro da anestesia. Este é o momento em que estamos encarregues de cuidar do paciente em situação crítica. Esta fase exige também conhecimentos na área de enfermagem bastante diferenciados. Esta etapa tem de ser assegurada por pessoas com elevada diferenciação e experiência nos cuidados ao doente crítico.
Há alguma história marcante ocorrida no bloco operatório que queira partilhar?
Das experiências mais gratificantes, e acontece com alguma frequência, é recebermos um doente que estava em risco de vida e poder salvar-lhe a vida, usando todos os meios, conhecimentos e equipamentos, disponíveis. Isso é algo que acontece no nosso dia-a-dia que nos traz muita motivação.
Por outro lado, já tive uma situação de uma pessoa que eu conhecia que entrou pelo seu pé no bloco operatório, para fazer uma cirurgia simples, e que veio a falecer durante o procedimento. É preciso salientar que estas coisas podem acontecer e não têm de estar, de modo algum, associadas a negligência clínica. Posso garantir que naquele dia fizemos de tudo para que tal não acontecesse. Quando a pessoa entrou em paragem, nós mobilizámos todos os meios, humanos e técnicos, para evitar que isso acontecesse. Infelizmente não se conseguiu evitar o desfecho, mas é algo que abala qualquer equipa.
Como se lida com uma situação dessas?
Não é fácil gerir. Tenho amigos que me perguntam se não fico impressionado com o que se passa no bloco operatório. Naquele momento, temos de nos concentrar em fazer o nosso trabalho bem feito. Temos de nos focar no membro que está a ser operado ou na barriga que está aberta. Por mais impressionante que possa parecer toda a envolvência, temos de nos abstrair, criando algumas defesas para que possamos lidar com estas situações que podem marcar-nos de uma forma que não seja patológica. Temos de aprender a relativizar e isto não tem de ser entendido como indiferença. Ninguém lida com uma má situação de uma forma leviana, no entanto temos que criar defesas de forma a evitar que fiquemos doentes ao lidar com situações extremas.
O que é necessário para se ser um excelente enfermeiro?
Para que se consiga exercer a profissão de uma forma excelente, penso que é essencial a capacidade de comunicação e a empatia com as pessoas.
Qual é a importância de uma boa relação entre o paciente e o enfermeiro?
Esta relação é muito importante em qualquer serviço, tanto nos hospitais como nos centros de saúde. No bloco operatório, que é a realidade que conheço melhor, há que ter muito cuidado com a comunicação, desde logo porque as pessoas chegam com ansiedade e há que saber acolher e tranquilizar. Neste caso, a comunicação assertiva e empática é primordial. No pós-operatório, se for uma cirurgia com anestesia geral, as pessoas estão um pouco sonolentas e, por norma, não é a altura ideal para se estabelecer uma comunicação ou empatia. Ainda assim, a comunicação não deixa de ser essencial para tentar perceber que necessidades a pessoa apresenta naquela fase de recuperação da cirurgia.
Qual é o papel do enfermeiro nos dias que correm e qual deveria ser?
Quando fui para enfermagem, ouvia histórias bonitas acerca das enfermeiras mais antigas, aquelas que trabalhavam nos centros de saúde das freguesias, que descreviam a importância que elas tinham naquelas populações.
Naquela altura, a população encarava o enfermeiro quase no mesmo patamar que o padre da freguesia. O enfermeiro era tido como uma pessoa muito relevante. Infelizmente, isso veio a perder-se ao longo do tempo.
Seria importante que a enfermagem, por via da Ordem dos Enfermeiros e por uma mobilização de todos os profissionais, tentasse reafirmar o papel do enfermeiro na sociedade, que assenta na prevenção da doença e na promoção da saúde. O futuro devia passar por promover o papel do enfermeiro junto das populações, tentando trazer novamente ao de cima o papel do enfermeiro como era tido antigamente.
Há falta de enfermeiros nos Açores?
Com a abertura do Hospital Internacional dos Açores, percebemos que a oferta de enfermeiros no mercado não é tão vasta como pode parecer.
É preciso entender que, com a pandemia, os hospitais públicos tiveram uma grande necessidade de aumentar o número de enfermeiros para poder fazer face à procura de cuidados, o que acabou por vazar um pouco a oferta que estava disponível.
Por um lado, se tivermos em conta os padrões de qualidade que a Ordem dos Enfermeiros estabelece para os cuidados de enfermagem, podemos ser induzidos a acreditar que existe falta de enfermeiros.
Por outro lado, se analisarmos a questão do ponto de vista economicista, segundo a lei da oferta e da procura, podemos ter outro olhar sobre a questão. Se existem enfermeiros mal pagos, poderá ser por excesso de oferta e visto nessa perspectiva podemos pensar que existem enfermeiros suficientes.
Em suma, neste momento, penso que não há falta de enfermeiros nos Açores, tendo por base estas duas vertentes. Se não estivéssemos num contexto de pós-pandemia, tínhamos enfermeiros a mais no mercado. No contexto da pandemia, temos os enfermeiros nas instituições, alguns a serem mal remunerados.
Que dificuldades e desafios enfrentam os enfermeiros nos Açores actualmente?
A pandemia fez com que os hospitais tivessem que absorver muitos enfermeiros existentes no mercado. Agora, há alguma incerteza quanto à necessidade de estes enfermeiros continuarem. Se houver um investimento grande em termos de produção no Sistema Regional de Saúde, julgo que seremos capazes de justificar o número de enfermeiros contratados. Não havendo investimento para aumentar a produção, pode vir a verificar-se um excesso de enfermeiros, o que conduz a um cenário de desemprego. Este poderá ser um problema a colocar-se brevemente na Região. Imagino que o Governo Regional tenha previsto este cenário e que esteja a adoptar medidas, porque não é popular despedir enfermeiros. De uma forma geral, as pessoas acreditam que eles fazem falta.
Que mensagem quer deixar neste dia?
Numa época em que estamos cada vez mais ligados à informática, às ferramentas digitais e aos computadores, nos quais fazemos os registos de enfermagem, que são um instrumento de enorme importância para a continuidade dos cuidados, bem como um instrumento legal de enorme importância, é preciso que o enfermeiro não se esqueça que é preciso dar atenção ao doente. É imperativo dedicar o seu tempo a ouvir e a cuidar das pessoas. Antes de ir para o bloco operatório, trabalhei num serviço de internamento e recordo-me de sentir que passava cada vez mais tempo à volta de um computador e cada vez menos tempo junto do doente. A mensagem que quero passar é que os enfermeiros nunca percam o que nos diferencia das outras profissões, designadamente a possibilidade e a disponibilidade para ouvir e para cuidar.
Carlota Pimentel