‘Bandeira da Beneficência’, a festa do Espírito Santo que mobiliza a vila de Rabo de Peixe com mais de mil irmãos a receber pensões

 Desde criança que Gilberto queria ser mordomo da Bandeira da ‘Beneficência’, em Rabo de Peixe. “Batia-me forte no coração sempre que via passar a coroação, os cortejos com os carros de bois, a distribuição de pensões, tudo o que se relacionava com o Espírito Santo. Um dia hei-de ter esta bandeira,” dizia, como se tratasse de um sonho de criança.
Gilberto, no entanto, foi obrigado pelas circunstâncias da vida a emigrar para Toronto, no Canadá, onde arranjou trabalho na construção civil. Em 1999 trava conhecimento, através de um amigo, com a jovem Idalina que tinha ido para Toronto com 17 anos. O namoro amadurece e cria fortes raízes. Um dos temas principais é o desejo de Gilberto de vir a Rabo de Peixe e ser mordomo por um ano da ‘Bandeira da Beneficência’. Casaram e o sonho de um, tornou-se no dos dois.
Idalina afirma hoje que trocavam muitas ideias sobre a festa da ‘Bandeira da Beneficência’, mas não tem a certeza se foi o Espírito Santo que os uniu. “Nós falávamos, mas não era nada de concreto. Mas quando falávamos do Espírito Santo, batia mais forte. E ele dizia que um dia ia fazer esta festa”, refere a jovem mãe de dois filhos.
Quando questionada sobre se foi o Espírito Santo que os uniu, a sua resposta foi um “pode ter sido. Tudo tem um quê, não é? Se foi Deus que nos uniu, assim seja”, afirmou.
Gilberto e Idalina levaram sete anos a trabalhar no Canadá e em 2016 chegam a Rabo de Peixe e fazem a sua candidatura a mordomos da ‘Bandeira da Beneficência’. Três anos depois, em 2019, recebem a notícia que o Espírito Santo lhes ira entrar em casa para terem a ‘Bandeira da Beneficência’ em 2020, por um ano. Só que veio a pandemia e o casal ficou com a Bandeira em casa, vão agora completar-se quatro anos. “E cá estamos nós para fazer estas grandes festas do Espírito Santo”, nas palavras de Idalina.

“O Espírito Santo é vivo”

O facto é que cada mordomo só tem a ‘Bandeira da Beneficência’ por um ano e a situação que ocorre com Gilberto e Idalina não é muito comum e só foi propiciada pela pandemia que foi adiando ano após ano, por quatro anos, a festa do Espírito Santo. Todos os anos tiveram que manter acesa a luz da ‘Bandeira da Beneficência’, mas sem fazerem ajuntamentos que até eram proibidos pelas entidades de Saúde. Talvez por isso é que ostentam, com orgulho, nas pensões e nas oferendas da massa, do vinho e da carne a designação: ‘Bandeira da Beneficência 2019-2023’.
Porque quiserem ser mordomos da ‘Bandeira da Beneficência’? O que os faz mover? Colocamos esta questão mais do que uma vez e de diferentes formas a Gilberto e Idalina e as respostas foram sempre as mesmas. O sonho de criança de Gilberto tornou-se o sonho da sua família e da família da mulher. Todos eles estavam em sua casa no dia em que fomos ao encontro da Idalina por sugestão do marido. E, desde logo, enchem-nos de perguntas sem nos conhecer: “Quer almoçar? E se for um petisco? Temos café, quer café?” Acabamos por tomar um café, ao mesmo tempo que explicamos quem éramos e de onde vínhamos.
“Olhe, a Idalina não está. Tem de esperar uns dez minutos”, dizia uma das presentes. Mas não foi preciso tanto tempo para a mordoma chegar. Fomos sentar-nos a um canto no meio de tanta azáfama. E por entre a conversa por mais de uma vez surge a palavra coração e um “forte sentimento” pelo Espírito Santo.
Mas porquê, insiste o jornalista, e a resposta vem genuína: “Está no nosso coração. Não sabemos explicar. Bate no coração. Está em nós”, dizia Idalina.
O que significa para si o Espírito Santo? “Que ele é vivo. Ele fortalece-me muito. Todas as vezes que estou aflita é a ele que me ampara. Vou a ele e ele ampara-me sempre”, afirma a mordoma.

Homenagem a Mecias Andrade

Espalhados pela ampla sala estão quadros com uma homenagem: “Com enorme alegria, no ano de 2007, Mecias Andrade e Humberta Medeiros aceitaram em sua casa o Divino Espírito Santo ‘Festas da Beneficência’”.
O infortúnio de em Março de 2008 ter falecido o mordomo daquele ano, Mecias Andrade, originou a improvisação das grandiosas festas numa redução muito significativa devido à dor da sua família por ter perdido este ente querido: “Mesmo com lágrimas nos olhos e o coração sofrendo com a tua eterna ausência, nós queremos muito deixar a nossa homenagem”; “Para ti que sempre viveste e encheste as nossas vidas de felicidades”; “Sabes que terás sempre um lugar no nosso coração e onde estivermos o teu nome estará também”. Desde modo, servem estes painéis simbólicos ‘Tabuleiro do Cortejo do Pão’, presentes nestas festas, para homenagear Mecias Andrade, para que onde a sua alma esteja sinta a alegria destas festas vividas por todos inclusive a sua família presente e que deste modo as viva da mesma forma.
“Com muito pesar, aqui fica esta pequena homenagem aos mordomos do ano de 2007/2008”.


Mais de mil pensões

Uma festa como a ‘Bandeira da Beneficência’ demora um ano a organizar,  “e não somos só nós dois. É a família, os amigos e os amigos dos amigos. Somos muitos”, acentua Idalina.
No dia em que receberam a Bandeira, em 2019, passaram pela casa do jovem casal de mordomos à volta de cinco mil pessoas a entrar e a sair a ‘dar os parabéns’ num constante ‘comes e bebes’. E há anos que se chegou a atingir as sete mil pessoas.
“Nunca sabemos, ao certo quantas pessoas estão a entrar e a sair. Recebemos a Bandeira pelas 16 ou 17 horas e ficamos com a porta aberta até à madrugada do outro dia, sempre a receber pessoas, com comes e bebes. Só fechamos a porta quando não tivermos convidados a vir dar os parabéns”, descreve Idalina.
No dia 30 de Abril deste ano, fizeram um novo quarto do Espírito Santo e quando pelas 17h00 desse dia abriram a porta, toda a rua “estava repleta de pessoas para vir dar os parabéns”. Entravam, comiam e bebiam num vaivém constante.
Este ano abaterem 22 novilhos para as mais de mil pensões distribuídas pelos irmãos, a 30 euros cada pensão. “Há alguns que dão mais um pouco”, revela a mordoma. Quase todos estes novilhos são criados por lavradores, aquilo que designam como criadores de gado e “criadores secos”, conhecidos como beneméritos.
A greve no Matadouro de São Miguel caiu como uma bomba na organização da ‘Bandeira de Beneficência’: “Já viu o que é chegar ao dia e não ter a carne para distribuir. Não se brinca com isso”, afirmou Gilberto.
 O cortejo da bênção da carne, com banda de música, entre a Igreja Paroquial e o espaço do Mercado, que se realizou na Sexta-feira, mais pareceu uma procissão com os passeios cheios de pessoas a assistirem. E, no Sábado, realizou-se o tradicional cortejo do pão “que também é muito bonito”, nas palavras de Idaliana.
Hoje é o dia maior da ‘Bandeira da Beneficência’ com a coroação, numa festa em que todos os “momentos são importantes”. Uma coroação que saiu da casa dos actuais mordomos e termina na cada dos mordomos do próximo ano.” Para entregar a bandeira é sempre triste”, diz, a propósito, Gilberto.
 E, no final, o que ganharam? “Fé”, respondeu Idalina enquanto Gilberto acrescentou: “Não ganhamos nada. O que vamos ter é amizades. Conhecemos muitos amigos em muitas freguesias de São Miguel. E são amigos que ficam para o resto da vida”.
A ‘Bandeira da Beneficência’ é considerada uma das maiores, senão mesmo a maior festa do Espírito Santo de Rabo de Peixe. E Gilberto e Idalina vão regressar ao trabalho no Canadá, mas para memória futura fica que foram os únicos mordomos da vila que ficaram quatro anos com a Bandeira em casa.

João Paz

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Autor: CA

Categorias: Regional

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