1- Se dúvidas houvesse, o espectáculo público que se passou esta semana em Portugal quanto à forma e ao conteúdo em que decorreu a visita “inspectiva” à residência do ex-Presidente do PSD, Rui Rio, e à sede nacional do PSD, onde se vasculharam documentos até às quatro horas da manhã, colocam um conjunto de interrogações quanto ao poder e aos limites dos poderes de Estado que são os pilares do regime Democrático.
2- Temos inúmeras vezes referido que a instituição do princípio da denúncia anónima, permitida em nome da transparência, tornou-se numa prática usada pela Inquisição que, como se sabe, foi uma máquina de condenar e matar, sem se conhecer o denunciante e sem prova.
3- Foi um período negro e horroroso da História, que não se pode repetir nem permitir sequer em democracia, onde tem de prevalecer o direito à presunção da inocência, enquanto não houver provas acusatórias ou condenação do acusado.
4- O segredo de justiça é permanentemente violado, sem que a justiça consiga apurar culpados. Mas, o mais preocupante nesse “festival” proporcionado pelos 100 investigadores e pelos jornalistas da TVI foi a forma como reagiu a Procuradora Geral da República quando questionada sobre a carta protesto que lhe foi enviada pelo Secretário-geral do Partido visado. Pela forma como respondeu, fica a ideia que o Ministério Público anda em auto-gestão, já que a Procuradora nada sabia.
5- Perante o sucedido não podemos ignorar que é justo pensar-se que estamos perante um ataque à democracia, através dos partidos que são peças essenciais do regime o que obriga fazer-se uma investigação para se conhecer as razões e os fins que levaram a tanto.
6- O Presidente cessante do Tribunal Constitucional, ao comemorar os 40 anos do Tribunal, referiu-se às tentativas que existem de pressionar os tribunais no sentido de decidirem em certo sentido, e acrescenta “Não parece possível reverter esta situação, pelo que haverá que ponderar a melhor forma de lhe fazer face, sem afectar a reserva da actividade jurisdicional e a tranquilidade indispensável à ponderação judicial” e concluía dizendo “Como se vê, o futuro das jurisdições constitucionais apresenta-se complexo, problemático e desafiador. Para lhe fazer face, estas irão ter de se reinventar. Saberão fazê-lo? Poderão fazê-lo? Quererão fazê-lo?”
7- Ora, neste processo de investigação está em causa os financiamentos aos partidos políticos nos termos da Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho, Lei que determina que cabe ao Tribunal Constitucional fiscalizar o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, assim como verificar as contas anuais de partidos políticos, contas relativas a eleições presidenciais e contas relativas a eleições legislativas.
8- Perante as competências do Tribunal Constitucional é legítimo perguntar se ao analisar as contas do PSD, ele deixou passar a matéria que agora foi tornada em crime pela investigação do Ministério Público?
9- Esta é uma questão que deve ser esclarecida assim como consegue o Ministério Público enquadrar os crimes de peculato e abuso de poderes na Lei 19/2003, de 20 de Junho.
10- Depois deste episódio não se pode continuar a dizer “à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política” porque falando-se dos meandros processuais e, sobretudo, dos suspeitos ou arguidos como culpados ou autores da prática do crime em fase de investigação, é queimar em lume brando os visados, mediante o envio diariamente para a opinião pública de notícias, encorajando-a a concluir que o cidadão ou a instituição em causa são culpados.
11- O que temos em Portugal é um problema grave que tem de ser encarado de frente e que se reporta às competências de cada Órgão de Soberania, Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais...
12- Não se pode manter o anátema de que a corrupção é o pão-nosso de cada dia e que os Partidos e os políticos são os mestres, repassando-se para o público a imagem que a Democracia está podre, quando o mal encontra-se nos serviços do próprio Estado e na forma como eles gerem as competências que lhe estão confiadas.
13- No momento em que estamos, o Presidente da República não pode enlear-se nas linhas cinzentas para manter tudo como está. A Justiça funciona mal, não é célere na acção, e peca por escudar-se na intuição do julgador.
Américo Natalino Viveiros