Correio dos Açores - Como avalia a situação actual das novas drogas nos Açores, considerando que representam mais de metade dos pedidos de análise de substâncias feitos à Polícia Judiciária? A situação está a agravar-se? Como se controla?
Renato Furtado (Coordenador da Polícia Judiciária dos Açores) – As novas substâncias psicoactivas (NSP) são substâncias que não estão integradas na lei da droga e não estão criminalizadas, pelo que a sua posse, venda e distribuição implica apenas uma contra-ordenação. Contudo, segundo a minha percepção, a problemática das NSP nos Açores e na Madeira mudou, de forma significativa, a partir de Maio de 2021, data em que houve um decreto-lei que adicionou o que era uma nova substância psicoactiva à lei da droga, ao decreto-lei 15/93.
A partir de Maio de 2021, a mais prevalente droga sintética nos Açores, o Alpha-PHP, a substância que estava a criar mais problemas em termos de saúde pública e ao nível da segurança pública, foi integrada na lei da droga, passando a ser criminalizada. O tráfico e a distribuição dessa substância passaram a ter consequências criminais. Há um antes e um depois de Maio de 2021.
Cerca de uma semana depois da entrada em vigor da lei, fizemos a detenção de um indivíduo por tráfico dessa substância que ficou em prisão preventiva e foi condenado a pena de prisão. Desde então, a substância prevalente em termos de droga sintética está criminalizada.
O Alpha-PHP, uma catinona sintética, é a substância que está a ser mais consumida ao nível das drogas sintéticas. Porém, é importante realçar que as novas drogas sintéticas não são as drogas mais consumidas na Região. As substâncias mais consumidas continuam a ser drogas convencionais.
As catinonas sintéticas têm aparecido e ganho o seu espaço mas, neste momento, não há um problema como havia a nível das NSP nos Açores, na medida em que a NSP que era o grande problema foi introduzida na lei da droga.
No entanto, dados recentes, incluindo dados de 2022, demonstram que, mesmo depois da introdução desta substância na lei da droga, continuam a aparecer novas substâncias psicoactivas, tanto nos Açores como na Madeira. (...)
Os traficantes fazem as aquisições directamente na internet, através da Clearnet e sobretudo Dark Web. A droga chega por correio e é feita a distribuição. A maioria dos traficantes adquire o Alpha-PHP, mas são também adquiridas novas substâncias, embora não tenham tido a prevalência, em termos de proporção de distribuição, que esta catinona sintética tem na Região desde 2019. As operações policiais vão encontrando algumas substâncias diferentes e envia-as para o Laboratório de Polícia Científica, que vai registando a existência destas NSP.
Está a ser promulgada uma nova legislação no que diz respeito à droga. Como reage a uma lei que aumenta o número de doses do consumidor? Acredita que isso afectará o trabalho da Polícia Judiciária no combate ao tráfico e consumo dessas substâncias?
Há duas questões que estão em causa. Em primeiro lugar, vai haver a inclusão na tabela anexa à Portaria nº 94/96 de 26 de Março de novas drogas que não estavam integradas. Ao passarem a estar integradas, vão ajudar na delimitação entre o que é o consumo e o indício de tráfico. A diferença passa a ser no que toca ao indício de tráfico.
Antes desta introdução, havia uma barreira clara do que era a quantidade necessária para 10 dias de consumo. Até essa quantidade, presumia-se que a substância era para consumo; acima dessa quantidade, presumia-se que a substância se destinava a tráfico. Isto significa que, mesmo sendo uma quantidade para consumo médio individual diário de 10 dias, se a Polícia Judiciária ou outros órgãos de polícia criminal tivessem indícios fortes de que a substância não era apenas para consumo, o indivíduo, apesar de ter uma quantidade baixa, era detido e tinha consequências criminais por tráfico. Para tal, tínhamos que ter a prova de que ele não estava simplesmente a consumir e que usava este pretexto legal para ter aquelas quantidades consigo. (...)
Por outro lado, se o indivíduo fosse encontrado com uma quantidade de estupefacientes superior às quantidades previstas na Portaria nº 94/96 de 26 de Março, com quantidades superiores a 10 dias de doses diárias individuais na sua posse, presumia-se a situação de tráfico. Logo, havia lugar à detenção em flagrante delito. (...)
O que mudou agora é que está afastada a presunção de tráfico, quando a pessoa é encontrada com a quantidade superior à necessária para 10 dias de consumo, passando a ser um mero indício. A presunção de tráfico está inibida, o que significa que não basta encontrar a pessoa com a quantidade superior a 10 dias, sendo preciso também fazer prova de que esta tencionava traficar aquela substância e que não era para o seu consumo. Ora, isto traz incerteza na actividade policial.
Vamos supor uma situação de flagrante delito. O órgão de polícia criminal está numa operação de combate ao tráfico e encontra uma pessoa com uma quantidade para 20, 30 ou 40 dias de consumo. O que faz? Onde está a fronteira a partir da qual, com segurança jurídica, podemos afirmar que se presume que será para tráfico, que a quantidade excede o que, na perspectiva de um cidadão médio, será o necessário para o consumo individual e que vai dar lugar à detenção em flagrante delito?
Vai haver uma avaliação caso a caso das situações. Obviamente que existem situações de quantidades com uma dimensão que qualquer pessoa entende que não é admissível que alguém possa justificar a posse daquela quantidade com consumo. Neste caso, só a quantidade levará à presunção de que é tráfico e a pessoa será detida e presente às autoridades judiciárias para aplicação das medidas de coacção.
O problema da alteração à lei da droga coloca-se no que toca ao flagrante delito...
Com esta alteração deixa de haver um dado pragmático e objectivo para nortear a actividade policial, no que diz respeito, desde logo, à situação do flagrante delito, quando uma pessoa é encontrada com substâncias estupefacientes.
O traficante, desde que esteja na posse de uma quantidade que possa argumentar, vai dizer que é para seu consumo. O órgão de polícia criminal, não tendo argumentos, dados ou indícios fortes de que não é só para consumo, terá algumas dificuldades em operar o flagrante delito.
No entanto, percebe-se o que está por detrás dessa alteração. O nosso poder político quer fazer uma delimitação entre os consumidores e os traficantes. Em termos conceptuais, conseguimos entender o que se está à procura. Pretende-se tratar o consumidor como um doente e (...) tratar o traficante como criminoso, aplicando as medidas processuais penais adequadas.
A questão é que, no âmbito do tráfico e do fenómeno da droga, não há consumidores de um lado e traficantes do outro. A maior parte dos indivíduos são consumidores e traficantes e é relativamente a esta actividade do tráfico / consumo que o combate vai ser mais desafiante e mais oneroso, na medida em que os órgãos de polícia criminal vão ter que empenhar mais meios, durante mais tempo, para conseguir fazer o trabalho relativamente aos traficantes / consumidores.
Terá que haver um trabalho prévio, de indícios fortes, de que o indivíduo trafica um determinado estupefaciente. Não havendo esses indícios, haverá algumas dificuldades em justificar, perante as autoridades judiciárias, a detenção em flagrante delito, pois o indivíduo em causa vai dizer que é consumidor de estupefacientes e vai conseguir demonstrá-lo através das perícias que são feitas, tendo em conta que muitos destes indivíduos traficam e também consomem. Aliás, muitos traficam para conseguirem sustentar o seu consumo.
A situação vai tornar-se mais problemática, especialmente para os órgãos de polícia criminal que investigam o tráfico de droga ao nível da distribuição directa aos consumidores.
Resumindo, a alteração ao artigo 40 traz alguma incerteza em termos do critério a ser utilizado para o flagrante delito. Ou seja, a partir de que quantidade é que as polícias, sem mais, vão passar a fazer o flagrante delito? Deixa de existir um elemento objectivo concreto para definir que a partir de uma determinada quantidade há lugar para uma detenção em flagrante delito. Passa a ser necessário haver quantidade para 10 dias e indícios fortes de que a pessoa vai usar aquela quantidade para traficar droga.
Considerando a facilidade de aquisição dessas drogas na internet, que medidas têm sido tomadas para combater essa forma de distribuição?
A droga é um problema no seu todo. Todas as substâncias estupefacientes que constam nas tabelas anexas ao decreto-lei 15/93 são substâncias altamente nefastas para a saúde de quem as consome e, posteriormente, num certo grau, para a saúde pública. Além das questões da saúde, são substâncias que suscitam problemas sociais, visto que têm prejuízo para as famílias onde esses consumidores estão integrados. Alguns, inclusive, têm práticas delinquentes e criminosas, sobretudo no âmbito dos crimes contra a propriedade, nos furtos, entre outros.
O combate de todo o fenómeno do tráfico de estupefacientes tem de ser encarado de uma forma holística, ou seja, no seu todo, até porque as redes não seleccionam um ou outro tipo de droga. As redes de tráfico de droga tanto trazem quantidades de haxixe, que é a droga mais consumida nos Açores, em Portugal, na Europa e talvez no mundo, como cocaína e heroína.
Mesmo no âmbito das drogas sintéticas, temos apreendido quantidades significativas de metanfetaminas, um estimulante do sistema nervoso central, que também tem efeitos disruptivos no comportamento da pessoa, à semelhança do que acontece com as catinonas sintéticas.
O enfoque da Polícia Judiciária nos Açores é, sobretudo, nos pontos de entrada da droga no arquipélago, designadamente pela via aérea, marítima e circuito postal. No que toca às drogas mais tradicionais, a tendência é chegarem ao arquipélago por via aérea e marítima. Já no caso das novas drogas sintéticas, o circuito é sobretudo via postal. Estamos atentos a combater o fenómeno e a fazer algumas apreensões nesta matéria.
Cada uma destas variantes tem idiossincrasias, tendo em conta que a correspondência, no circuito postal, é tutelada pelo sigilo. O facto de as encomendas estarem sujeitas ao sigilo da correspondência dificulta a actuação policial. De qualquer forma, fazemos a nossa triagem e sempre que suspeitamos que uma determinada encomenda possa trazer alguma substância ilícita, partimos para os procedimentos previstos na lei, abrindo a encomenda e verificando se contém algum estupefaciente. (...)
Estamos satisfeitos com os nossos resultados nos últimos anos, porque temos vindo a aumentar, ano após ano, a quantidade de droga apreendida. Apesar de estarmos no início de Setembro, já superámos a quantidade apreendida no ano passado em 21%. A quantidade de droga apreendida este ano tem sido bastante relevante.
O novo laboratório de Polícia Científica da Madeira entrou este Verão em funcionamento. Já se faz sentir o impacto deste laboratório na identificação das novas substâncias? Quais são as expectativas em relação a essa melhoria na resposta rápida?
O Laboratório de Polícia Científica tem recebido, ano após ano, um número mais elevado de pedidos de exames e de perícias, o que tem causado uma pressão acrescida na resposta que o laboratório tem que dar. Nesta medida, existindo mais uma extensão do laboratório na Madeira, a pressão do número de perícias a realizar na sede poderá diminuir.
Contudo, as perícias a realizar na Madeira são, sobretudo, as decorrentes das apreensões feitas pelos órgãos de polícia criminal da Região Autónoma da Madeira. Sendo necessário, existe a possibilidade de a Região Autónoma dos Açores enviar para a Madeira algumas situações de pedidos de perícia. Mas o nosso objectivo é, quando houver condições, podermos dar resposta directamente nos Açores.
Pretendem estabelecer um laboratório de drogas sintéticas nos Açores, à semelhança da Madeira?
No passado, já demos notícia de que a Polícia Judiciária tem o objectivo de mudar de instalações, a médio prazo. Esperamos que até 2026 a Polícia Judiciária possa estar em novas instalações, já adquiridas e que têm dimensão suficiente para integrar uma extensão de laboratório similar à que foi construída na Madeira. É preciso reunir as condições para que, quando for concretizado o projecto da nova sede da Polícia Judiciária nos Açores, possa também existir uma resposta ao nível pericial, similar ao que acontece no arquipélago da Madeira.
Na sua opinião, como se pode travar o consumo das novas drogas? Pela via legislativa? Através da criminalização?
A nível da criminalização, neste momento, a catinona sintética mais prevalente nos Açores já está criminalizada. O desafio reside no facto de estas novas drogas serem sistematicamente substituídas por novas versões. Quando os traficantes se apercebem que estão a ter consequências jurídico-penais, da venda dessas substâncias, vão à procura de outras que tenham substâncias que tenham efeitos similares mas, ao mesmo tempo, que tenham um desenho molecular diferente. Ou seja, tentam arranjar algo semelhante mas suficientemente diferente para não estar ligado à substância que já está integrada na lei da droga.
Regularmente, surgem novas substâncias mas pode surgir, de um momento para o outro, uma que seja aceite de tal forma pelos consumidores, tornando-se prevalente, e que os traficantes passem a investir na sua aquisição, substituindo aquela que temos. Quando isso acontecer, o desafio para o sistema é reconhecer que houve uma substituição da substância prevalente e fazer um caminho rápido, no sentido de a introduzir na lei da droga através dos mecanismos que existem para esse efeito. (...)
O desafio é conseguir que isso seja feito num prazo de tempo mais curto, do que a substância que é agora prevalente e já está integrada. No caso do Alpha-PHP, o processo de integração demorou cerca de dois anos, o que é algo excessivo. É muito tempo que a sociedade está a receber as consequências negativas associadas àqueles consumos e não consegue reagir criminalmente contra quem está a fazer a distribuição dessas substâncias.
Importa referir que é também muito importante conseguir uma rápida identificação das substâncias apreendidas, para dar consequência criminal a quem é encontrado na posse do estupefaciente.
Nas drogas tradicionais, logo após a apreensão do estupefaciente e em poucos minutos, sabemos se é droga e que substância é. Quando se trata de uma nova droga sintética, ou seja, uma substância que antes era uma NSP e que agora já é considerada uma nova droga, não há teste rápido acreditado para o efeito, que possa dizer qual é a substância e que o sistema de justiça acredite no resultado. (...) Existem, no mercado, instrumentos para isso, mas não têm a devida acreditação. As consequências de um resultado positivo dado por um instrumento desses são de grande gravidade para o detentor da substância, pelo que temos de ter a certeza de que o resultado corresponde à realidade. A margem de incerteza e erro tem que ser mínima. Estamos em procedimento de avaliação de instrumentos que, sendo acreditados, podem dar uma resposta importante neste combate.
Com base na sua experiência, quais são as perspectivas nos próximos tempos em relação ao tráfico e consumo dessas novas drogas? Quais são os principais desafios a serem enfrentados?
O combate ao tráfico de estupefacientes tem duas vertentes: o combate sobre a oferta e sobre a procura da droga. As polícias trabalham sobre as redes e os traficantes, no sentido de diminuir a oferta, fazendo apreensões e impedindo que a droga chegue aos circuitos de distribuição. (...) Por outro lado, outras instituições têm o seu enfoque na diminuição da procura. É necessário trabalhar junto dos consumidores para que eles deixem de consumir ou entrem em programas de substituição, o que também não é fácil. Fazer com que haja menos toxicodependentes à procura de droga é um grande desafio.
Outro grande desafio é conter a entrada de novos elementos no consumo de estupefacientes. A grande questão é tratar os que já são consumidores e impedir a entrada de novas pessoas nesses consumos.
Os dados nacionais, infelizmente, colocam os Açores no top das regiões com mais prevalência de consumos, de drogas e de álcool. Há um combate a fazer nestas duas vertentes.
Não sei se algum dia será possível, mas o objectivo é ir melhorando progressivamente estes valores, fazendo com que cada vez menos pessoas procurem a droga.
Carlota Pimentel