Curta-metragem “Cócegas na Terra” em São Miguel da jovem realizadora Maria João Sousa concorre a dois prémios internacionais

Maria João Sousa tem a  Psicologia-clínica como formação base, mas o gosto pelas artes esteve sempre presente, “e então cheguei a uma altura em que achei que devia lutar pela paixão que eu tinha e fui estudar cinema.” Chegou a trabalhar numa produtora no Porto, mas entretanto, surge uma oportunidade de trabalho para o namorado, natural de S. Miguel, mas que já estava no continente há muitos anos. É assim que a realizadora, grávida do primeiro filho, chega aos Açores.

“São pescadores que não
vão nos barcos”

A realizadora conta que no caminho para a creche do filho passava todos os dias pelos pescadores de Santa Clara e, embora não percebesse bem o que é que os eles estavam a fazer, a imagem do “cintilar do sol e a luz nas cordas, o andar deles de um lado para o outro” ficou-lhe sempre no pensamento como algo que queria usar. Até que um dia decidiu perguntar: ‘Mas, então, o que é que os senhores estão aqui a fazer?’
Foi então que ficou a conhecer a pesca do palangre e “esta arte de esticar as cordas que é tradicional dos Açores”. Nas conversas com os pescadores, que se mostraram sempre disponíveis e felizes por dar a conhecer o seu trabalho, acabou por perceber mais sobre os barcos que vão à pesca do palangre e todo o sistema de linhas, mas aquilo que chamou, realmente, a atenção da realizadora Maria João Sousa, foi a perspectiva dos ‘pescadores de terra’, uma denominação que até então desconhecia.
Diz-nos que as pessoas estão mais habituadas a ver os pescadores a trazer o pescado nos barcos, mas muitas vezes esquecem-se dos bastidores, de quem está a construir as linhas, a arranjar o material e a querer que tudo fique prefeito para que os outros possam voltar rápido ao mar.
Foi a partir do momento que a realizadora percebeu que eles “são pescadores que não vão nos barcos” que surgiu a abordagem poética para a curta-metragem que se seguiu. São imagens também traduzidas pela música “porque, no fundo, os barulhos, os sons dos barcos, as próprias linhas, a própria forma como se vê, visualmente, apontava muito para esta musicalidade inconsciente que existe à nossa volta e que nós, às vezes, não estamos a par dela.”

Estreia: “O mais importante
foram os aplausos dos pescadores…”

Por ser uma curta-metragem de 15 minutos, a estreia, que aconteceu na Junta de Freguesia Santa Clara, teve espaço para incluir as pessoas envolvidas no projecto. O evento contou com um concerto de improviso do Conservatório Regional de Ponta Delgada, responsável pela banda sonora do filme e sob a Direcção, coordenação e apoio técnico de Emanuel Cabral, Gianna de Toni e Mónica Reis. Também contou com a presença dos grandes parceiros do projecto, nomeadamente, a Junta de Freguesia de Santa Clara e a Câmara Municipal de Ponta Delgada.
Segundo a realizadora, as palavras que protagonizaram as reacções ao filme foram “sensibilidade”, “poesia” e “colaboração” e confessa que, quando o filme acabou, não estava à espera de “tanto calor”, de tantas palmas, mas “o mais importante foram os aplausos dos pescadores para os pescadores. Foi mesmo a parte mais emocionante da noite. Eles levantaram-se, bateram palmas. Gostaram daquilo que viram. Viram que alguém valoriza o trabalho deles.”
Lamenta que os pescadores não pudessem estar todos presentes, mas adianta que estão previstas novas sessões para incluir os restantes e também para que outras pessoas possam ver a curta metragem. A realizadora gostava de levar o filme a outras ilhas e considera também importante introduzir uma conversa final com o público. Uma pequena discussão sobre a questão da “musicalidade inconsciente”, da pesca e, na verdade, sobre aquilo que surgir, pois, para Maria João Sousa, “as pessoas também têm a sua interpretação, a sua visão. No fundo, também se trata de consciencializar através do cinema. É esta a minha premissa enquanto realizadora: que a arte chegue a um ponto de intervenção, intervenção pessoal e social.”  

Filme “Sabrina”: os bastidores
dos concursos das vacas
Holtein-Frísia
 
Neste momento, a realizadora tem dois projectos entre mãos, um em fase de preparação e outro, já em pós-produção, com estreia prevista para o final deste ano.
Em fase embrionária está o documentário biográfico “Livre como Vento/ Alto como as estrelas” sobre a vida de Manuel Ferreira, escritor, filósofo e jornalista açoriano. Diz a realizadora que tem uma enorme curiosidade acerca desta grande personalidade açoriana que, por ter tido um percurso tão vasto, documentar a sua vida é um exercício que precisa de “tempo de maturação” e acrescenta que “É uma pessoa que também merece isto e quero fazê-lo com alguma calma e dedicação.”
A pouco tempo de estrear está “Sabrina”, um documentário sobre os concursos de vacas Holtein-Frísia promovidos pela Associação Agrícola de São Miguel. Trata-se de um registo em que a produção esteve a acompanhar todos os passos que antecedem o concurso, passos que vão desde a criação da vaca a todos os cálculos que são feitos para que esta esteja na sua melhor forma.
Segundo a realizadora, “é um autêntico concurso de beleza” onde a dedicação ao detalhe “é um imperativo.” ‘Sabrina’, é uma vaca, mas acaba por representar muito mais do que isso, representa o amor aos animais e a dedicação e união da família: “É um filme que, no fundo, também mostra estes bastidores de preparação das vacas. Estivemos com os lavradores, com os filhos e netos para perceber esta dinâmica acerca das lavouras.”

“Panorama”: filme vencedor
do prémio de melhor curta
documental

Quando questionada acerca do projecto que a marcou mais, Maria João Sousa diz que cada um a marca à sua maneira porque tudo isto tem que ver com fases em que se está mais motivado para este ou aquele tema: “o “Cócegas na Terra” é um projecto que já tinha desde 2017 e é muito bonito, é um poema visual. E com “Sabrina” aprendi muito. Não sei, não consigo escolher.”
 No entanto, e talvez por ser o primeiro - “porque foi uma coisa muito crua” - menciona a importância de “Panorama”, um filme que mereceu o prémio norte-americano para melhor curta documental no Independent Documentary Film Festival Legendary Doc.
O documentário dá voz a seis jovens açorianos de diferentes freguesias que são postos a discutir vários temas e à medida que a conversa avança vão ganhando consciência da subjectividade do real. “Embora vivam na mesma ilha, vivem em zonas e contextos completamente diferentes. Eu própria surpreendi-me com algumas respostas. Foi uma grande aprendizagem.”

“Os Açores têm muita história…”

Para além dos filmes, a realizadora também participou noutros projectos com a paisagem micaelense em plano de fundo. É o caso dos videoclipes de “Beauty in Life,” da cantora açoriana Maria Carolina e “It could be the best part”, da artista norte-americana Silly Lily, que gravou na Lagoa das Sete Cidades.
Para Maria João Sousa, o melhor destes projectos é, precisamente, o contacto que se estabelece com estas pessoas que a inspiram e motivam. Também nos diz que todos ganhamos em fazer: “Depois, até onde é que vai? Vamos ver. É bom aprender sobre tanta coisa: já aprendi sobre a pesca, sobre lavouras, tanta coisa que quero partilhar. Ainda tenho muita coisa nos Açores que me inspira. Ainda tenho algumas ideias apontadas que tenho de estruturar melhor. Os Açores têm muita história, muita beleza que eu ainda quero partilhar,” conclui.
                              
Daniela Canha

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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