Correio dos Açores – Para a igreja católica, qual é o significado do Dia de Todos os Santos?
Padre Duarte Melo – Em primeiro lugar, esta solenidade, este dia que é tão festivo para o povo cristão, traz-nos precisamente a alegria de testemunharmos e vivenciarmos todos aqueles que, no leito da morte, alcançaram a imortalidade. A Santidade fala-nos aqui, também, desta dimensão de imortalidade. Por outro lado, numa só festa, honramos todos os Santos, portanto, os Santos que estão em comunhão connosco e que não estão referenciados em termos de nome. É uma multidão imensa de gente que nem podemos contar e a igreja honra o nome de todos os Santos. Por isso é um dia também que traz muita emoção às pessoas.
Esta festa também vai-nos lembrar que - e convida-nos - para este horizonte da Santidade, seguindo o exemplo dos nossos Santos que estão diante de Deus, de uma forma luminosa, porque quem está diante de Deus recebe luz e é luminoso. Os Santos trazem-nos esta luz. São pessoas que viveram a dimensão do limite e do pecado, mas que reconheceram sempre a misericórdia de Deus e não causaram danos nem à terra nem ao mar. Por isso é que os Santos brilham no céu, são estrelas que brilham para nós, pelo seu testemunho.
O Dia de Todos os Santos faz-nos lembrar, igualmente, que Santidade é um dom de Deus. Requer também a nossa colaboração, mas é um dom de Deus, que recebemos e que nos torna felizes. Daí que o evangelho do próprio Domingo, todo ele, remete-nos precisamente para a Carta Magna do Cristianismo, que são as bem-aventuranças. São palavras que vêm trazer um fermento novo à terra e que nós tanto precisamos, como também são palavras que vêm acender em nós o desejo da Santidade que nos compromete a construir um mundo melhor, um mundo de gente boa, que vive a verdade, a justiça e a paz. O que nós estamos a assistir, infelizmente, neste nosso tempo, que é um tempo marcado por tantas sombras, tantas assimetrias sociais, tantas injustiças, um mundo varrido por guerra, por ódio, um mundo tão dividido por causa de um pedaço de terra.
A Santidade vem desconstruir toda esta ambição, e ao mesmo tempo vem convidar-nos à confiança, esta confiança existencial que devemos ter uns para com os outros e aos cristãos que se deixem instruir por Deus. A Santidade passa também por isso, por nos deixarmos instruir por Deus, e, por outro lado, também acreditarmos que temos um destino, e o nosso destino é a eternidade, que é algo de que se fala pouco, nos dias de hoje – da eternidade – que é este tempo pleno, que é o tempo de Deus. Estamos destinados a viver o tempo de Deus como um tempo de amor. Também já neste mundo podemos ter estes reflexos de eternidade, vivendo a bondade e o amor uns para com os outros. Por isso é que o Cristianismo nos coloca neste caminho de sermos pessoas de bem-aventuranças, sermos pessoas felizes. A primeira bem-aventurança começa: felizes dos pobres. Não significa que nosso Senhor queira pobreza. Esses são felizes, não porque vivem a pobreza, mas porque têm uma boa mensagem a transmitir-nos. Por vezes, temos dificuldade em ver nos pobres coisas boas, e só vemos as coisas más, porque os nossos olhos estão muito contaminados. Isto também vem nos recordar para termos esta capacidade de olharmos os mais pobres, porque eles têm mensagens a transmitir, pela sua simplicidade, pelo sentido solidário que eles têm uns com os outros. Isto também nos ajuda. Estamos muito agarrados a coisas desnecessárias e inúteis, que nos vão entupindo por dentro, que vão entristecendo as nossas próprias almas e que fazem da nossa vida um inferno. E a Santidade é ao contrário, é fazer da nossa vida uma bênção, é vivermos do essencial, sermos capazes de ser pessoas de perdão e de tolerância, compassivos uns para com os outros, ajudar quem mais preciso e sermos portadores da paz.
A Santidade reside em tudo isso, sermos gente de paz, porque Deus multiplica vida aos fazedores da paz. Daí esta dimensão num mundo tão assimétrico e tão dividido, a Igreja é chamada para ser portadora desta mensagem nova que se quer para o mundo, que é um mundo pacificado. O próprio Papa Francisco recorda-nos tanto isso. A Santidade está nisso: não fazer mal uns aos outros, não fazer mal à terra nem ao mar, não desequilibrar as sociedades, portanto, sermos um povo de harmonia, que, no fundo, é um povo que deveria viver a fraternidade universal.
Celebrar os Santos traz-nos isso tudo, como também nos recorda o testemunho que recebemos das pessoas das nossas famílias e que nós guardamos no coração, porque este é o testemunho da Santidade, pessoas que são honradas, sérias, simples, humildes, com sentido da boa vizinhança, capazes de ajudar quem precisa, de serem colaboradores nos seus locais de trabalho, pessoas que pautam a sua vida por critérios e princípios de ética com base, também, nos valores do Evangelho. Dizemos “olha o exemplo do teu pai,” “olha o exemplo da tua mãe,” portanto, estes são os nossos santos, são esses que nos dão os bons exemplos e que nós guardamos com muita ternura no nosso coração, em vida, e também quando eles partem para a eternidade.
Por isso, esta é uma festa muito bonita, uma festa em que nós celebramos a vida, o que vem contrariar esta outra festa do Halloween, que é uma festa de terror, do medo e de pregar sustos nas pessoas. A Santidade, não. Toda ela é de luz, é luminosa, não vive de sombras, de sepultura, mas vive desta dimensão. Por isso é que, neste dia, as crianças vão pedir o pão-por-deus, pelas ruas, com os seus saquinhos, batem à porta das pessoas, mas sem ameaçar que vão atirar ovos à casa das pessoas se não derem rebuçados. É tudo ao contrário. Como cristãos e como Igreja, devemos valorizar também as nossas tradições que, de certa forma, são dramáticas, desta Santidade que estamos a celebrar. É uma festa que nos compromete à construção do bem e de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Esta festa acende em nós o desejo de sermos pessoas boas, que se deixam salvar no amor de Deus. Todos nós precisamos de salvação, todos nós precisamos de amor. O amor é que nos resgata e salva.
Por isso, é uma festa que também nos emociona, que traz também o dom das lágrimas. Há pessoas que deixaram de chorar, porque os seus corações tornaram-se pedra, tornaram-se corações rígidos e indiferentes, porque valorizaram os acessórios da vida. Quando valorizamos o essencial, os nossos corações tornam-se em carne, um lugar do amor, e trazem-nos as lágrimas, a emoção e a compaixão. Hoje em dia há muita gente que deixou de viver a compaixão, porque os seus corações tornaram-se pedra. Celebrar o Dia de Todos os Santos é dizer, também: “olha para o teu coração, vê o bom e a beleza que tens no teu coração, o que recebeste. Por isso, se recebeste de graça, dá de graça também. Este é que é o sentido da Santidade: aquilo que recebemos de graça, também devemos dar de graça.
Esta festividade também coincide com o Halloween, uma importação dos Estados Unidos da América cada vez mais comemorada cá. Em que medida o Halloween se afasta do Dia de Todos os Santos e da tradição do pão-por-deus e como desvia a atenção da comunidade católica?
Esta é uma festa importada. Vem contrariar, precisamente, a nossa própria tradição. O Halloween é uma festa que nasce muito do contexto das economias neo-liberais e de mercado, porque interessa é vender. Não é uma festa que celebre a vida, toda ela é uma festa voltada para o susto, morte, vingança, sombra.
O pão-por-deus é precisamente o contrário: vem celebrar vida, e não morte, cemitérios, caveiras, nem nada disso. São coisas completamente distintas. As crianças que vão pedir pão-por-deus não fazem ameaças, nem represálias, enquanto no Halloween há represálias, a chamada travessura. É contrário ao espírito cristão e à nossa tradição. Por isso, o que devemos valorizar são as nossas tradições e falar delas.
O Halloween entrou pelas escolas, pela disciplina de Inglês, e ficou cá, mas não devemos esquecer as nossas raízes, porque um povo sem raízes é um povo que perdeu a sua alma. É uma construção que desfoca o Dia de Todos os Santos. É uma outra tradição que não é a nossa. Por isso, há que cuidar da tradição e não a por de parte, porque senão, ela corre o risco de desaparecer com esta invasão do Halloween, que é uma “invasora” que se está a estender no contexto cultural dos Açores e o pão-por-deus, que era uma referência de cultura e de identidade, está a tornar-se cada vez mais enfraquecida.
O pão-por-deus pode deixar de existir?
Sim, pode. Há este perigo. É como as plantas invasoras. Portanto, se não trabalharmos nesta dimensão da tradição e de toda a sua riqueza, o Halloween vai implantar-se no território cultural açoriano.
O Halloween não pode coexistir com as nossas tradições?
Pode coexistir, mas não se pode sobrepor. É obrigação também das escolas, dos educadores e das instituições resgatar os calores da tradição. Pode-se correr o risco de se perder esta tradição do pão-por-deus.
Como têm sido celebrados o Dia de Todos os Santos e o pão-por-deus ao longo do tempo?
O Dia de Todos os Santos é assinalado pela Igreja, pela liturgia e pela celebração, pelo sentido da festa; rezar e invocar a memória de todos aqueles que do leito da morte estão na imortalidade, que são gloriosos e testemunhos luminosos, pela humildade, pela bondade, pela paz e pelas bem-aventuranças, por isso foram pessoas felizes, vieram do essencial e não do acessório e do fútil que entopem a alma das pessoas e tiram o sonho.
Já houve maior vivência, da parte de todos. Embora as pessoas associem o Dia de Todos os Santos com os Fiéis Defuntos, mas são duas coisas distintas, em termos celebrativos e litúrgicos. O calendário litúrgico marcava muito a vivência das pessoas e das populações. Agora está muito diferente. As coisas foram-se alterando neste sentido.
Mariana Rovoredo