Correio dos Açores - Pode falar-nos um pouco sobre si e sobre o seu percurso?
Marco Costa – Sou do Alentejo e vim para os Açores leccionar Educação Física. Fui ficando por cá e, entretanto, já se passaram 22 anos. Na ilha tinha muito tempo livre e foi assim que surgiu o passatempo da fotografia que, mais tarde, deu origem ao projecto Atlantic Surfers.
Como é que surgiu o projecto?
A ideia surgiu numa conversa entre amigos. Eu e o meu parceiro do projecto, Bruno Gomes, dissemos “porque não?!” Isto aconteceu pouco antes da pandemia Covid-19 e acabou por se ir materializado durante este período. Apesar de todo o mal que a pandemia trouxe, a verdade é que acabou por nos dar mais tempo para preparar as coisas com calma e só avançamos quando considerámos que era a altura certa.
O projecto surgiu com o gosto pela fotografia e queríamos fazer alguma coisa que pudesse ser diferente de alguma forma. A ideia não será nova, mas quisemos acreditar que na ilha seríamos os primeiros a ter um espaço aberto a todos, a qualquer projecto e a qualquer pessoa que se identificasse com a nossa forma de estar. Queríamos, sobretudo, um projecto descomplicado. Trabalhamos nele apenas no nosso tempo livre, sem qualquer pressão, o que facilita muito as coisas.
Quais são os objectivos e valores?
Apesar do nome Atlantic Surfers dar a ideia de que somos uma comunidade ligada ao surf e ao mar, a verdade é que não podia estar mais longe disso. Somos uma comunidade que procura explorar a vida na ilha e homenagear a cultura do surf nos Açores, mas não só. O gosto pelos Açores, pelo mar e pelas ondas foi apenas uma ponte.
Estamos sedeados na Casa Improvável, um espaço que está literalmente aberto a todos e que acaba por albergar as nossas ideias e as ideias de quem nos visita. Os nossos valores passam por ter um espaço despretensioso, onde qualquer pessoa com interesse pode expor o seu trabalho. Como costumo dizer, basta que a pessoa tenha interesse em expor e nós abrimos a porta da forma mais simples e descomplicada possível, tão descomplicada que às vezes as pessoas estranham.
Como funciona a Casa Improvável e quem pode expor lá?
No fundo, é um espaço para criativos, não só para quem é dos Açores, mas para qualquer pessoa que faça algo e queira partilhar. Temos imensas pessoas na ilha que fazem coisas muito interessantes e que, muitas vezes, ficam guardadas por não terem onde expor, ou porque o processo das galerias convencionais é mais exigente, tanto a nível de burocrático, como monetário. Na Casa Improvável isso não acontece, a porta está sempre aberta e, muitas vezes, nem precisamos de saber o que é que a pessoa vai expor. Se ela considera que se enquadra, nós estamos cá para ajudar. Também já tivemos exposições de estrangeiros que produziram algum trabalho durante a temporada que passaram cá.
Para além disso, não temos uma agenda pré-definida. A maior parte das exposições surge porque conhecemos alguém interessante e fazemos o convite, ou através de alguém que nos dá sugestões.
Esta comunidade tem vindo a aumentar de uma forma muito curiosa. A cada exposição que fazemos, há sempre alguém novo que depois passa a palavra a outras pessoas. Não somos apenas uma comunidade ligada ao surf, mas o produto que resulta desta comunidade. Existem imensas pessoas ligadas ao surf que têm projectos interessantes, mas também há outras pessoas com percursos completamente diferentes que acabam por sentir uma ligação ao Atlantic Surfers e à forma como nós encaramos aquilo que fazemos.
Desde as colchas da Dona Maria, a nossa vizinha, que faz disso um passatempo, e que depois acaba por deixar as suas criações num baú, como aqueles que as nossas avós tinham, até fotógrafos com algum nome internacional, que também já foram expor na improbabilidade das Socas, no Livramento. Daí o nome da casa que alberga as ideias e os projectos.
Na vossa plataforma online têm uma com rubrica “As Nossas Pessoas”. Quer explicar?
Fazemos um conjunto de entrevistas a pessoas interessantes, que tenham um projecto, como é o caso da Sara Cruz, com a música, ou outras pessoas que, não tendo um projecto propriamente dito, são interessantes por serem quem são e pela sua forma de estar. Além disso, temos o Azores Atlantic Riders, que acaba por ser um sub-projecto do Atlantic Surfers, numa vertente dedicada ao gosto pelas duas rodas.
Para mim, fazer estas entrevistas é uma das partes mais gratificantes do projecto. Acaba por ser um arquivo para nós e para quem visita a ilha, porque têm acesso às pessoas e àquilo que se faz por cá.
O que se entende por ‘cultura açoriana do surf’?
Nos mais de 20 anos em que vivo em São Miguel, passou de um grupo pequeno de amigos para uma explosão enorme de pessoas, o que foi também impulsionado pela propaganda que se tem feito do arquipélago e do mar dos Açores.
Dentro dessa comunidade, há, de facto, pessoas muito interessantes com projectos extraordinários. Não só as que vivem cá, mas também as que nos visitam e isso tem enriquecido muito o projecto. Mesmo que os contactos que vamos fazendo não terminem sempre numa exposição na Casa Improvável, são uma mais-valia pelos conhecimentos, pela troca de ideias.
As pessoas de fora trazem as suas visões, o que nos faz ver e pensar determinadas coisas de outra forma. Pode ser um cliché, mas as pessoas ligadas ao surf e às ondas têm uma mentalidade aberta e, muitas vezes, alternativa. São muito receptivas ao nosso trabalho, quer este seja ligado ao surf, ou não.
Essa comunidade é muito aberta e ajuda-nos imenso a crescer e a explorar aquilo que se faz na ilha.
No vosso site pode ler-se a frase “surfar a ilha, respeitar os locais”. Quer comentar?
Na verdade, esta é uma premissa global. Mas com o crescimento da comunidade na ilha, o respeito pelas pessoas que cá vivem e que têm de conviver com todo o turismo desaforido é, hoje, mais do que nunca, um imperativo. E tratamos de frisar isso, até por uma questão de segurança dentro de água, porque basta ir num dia de sol e de boas ondas à Praia das Milícias para ver o caos que há no mar. É imperativo que haja respeito dentro e fora de água pelas pessoas e pela ilha.
Existem várias escolas de surf em São Miguel. O que representa para si a expansão do surf?
As escolas são a mostra máxima de quanto o surf cresceu nos Açores. É a marca registada do crescimento. Se há vinte e tal anos era possível ir à praia de Santa Bárbara e estar lá sozinho, estranhamente sozinho, actualmente numa Segunda-feira às oito da manhã a praia já está cheia, normalmente com estrangeiros nas escolas de surf.
O surf é uma actividade que promove um estilo de vida saudável e, por consequência, afasta os jovens de comportamentos mais desviantes. Quer comentar?
Sem dúvida. Posso dar o meu exemplo. Comecei a fazer surf aos 13 anos e, até então, não era muito amigo de estudar, mas quando os meus pais me disseram que ou estudava, ou me tiravam a prancha, comecei a aplicar-me muito na escola. Revejo isso nos miúdos de hoje, mas agora há muito mais apoio e compreensão por parte dos pais e há o apoio das escolas.
Para além disso, não estando em forma torna-se muito complicado fazer surf por ser um desporto difícil e fisicamente desafiante. É preciso estar atento àquilo que se faz no dia-a-dia, ao que se come, às horas de sono e, por isso, sem dúvida que o surf promove um estilo de vida saudável.
Também é um motor para tirar os jovens dos vícios e de caminhos mais desviantes. Existem vários projectos ligados ao surf no sentido de trabalharem com jovens de comunidades mais desfavorecidas e, quando salvam pelo menos um jovem de uma vida mais difícil, já é uma grande vitória.
Para si quais foram os momentos mais marcantes deste projecto?
Curiosamente, o que me marca mais são contactos como este, quando nos procuram e querem conhecer o projecto. Isto surgiu literalmente numa conversa entre amigos e passados cerca de dois anos e pouco, fico sempre espantando. Se alguém nos procura e quer saber aquilo que fazemos, significa que estamos a ir num bom caminho.
Quais são os vossos objectivos para o futuro?
O nosso objectivo para 2024 passa por criar residências artísticas na Casa Improvável. Queremos que alguém fique na casa por uma temporada e que, no final, apresente uma exposição. Para além disso, queremos continuar aquilo que estamos a fazer, abertos a exposições, a passar a nossa mensagem e dar a conhecer o outro lado da ilha, outra visão que não a que vem nos postais das lojas de souvenir. Somos um projeto de todos e para todos e a nossa porta está sempre aberta. Não temos nada para ensinar, mas temos muito para partilhar.
Daniela Canha