Face a Face...! com o Coronel José Carlos Magalhães Cymbron

“Se fosse governante avançava o mais rápido possível com o estudo do novo molhe do porto de Ponta Delgada”

 Correio dos Açores - Descreva a sua vida desde a escola primária à entrada na vida militar.
Coronel José Carlos de Magalhães Cymbron - Vivi em Angola durante quatro anos, onde fiz a segunda classe da Instrução Primária. Posteriormente, frequentei a Escola da Mãe de Deus, onde fiz a terceira e quarta classe pela mão dos meus inesquecíveis professores Luciano Reis e Rubens Pavão, este, felizmente, ainda no meio de nós. Considero que aquela escola, então da Direcção do professor Palha, era verdadeiramente exemplar. A seguir, fiz o ensino secundário no Liceu Nacional Antero de Quental e, em 1963, ingressei na Academia Militar, curso de Engenharia Militar. Ao fim de quatro anos, os alunos de engenharia iam frequentar os últimos três anos do curso de engenharia civil do Instituto Superior Técnico a que se seguia um ano de tirocínio na Escola Pratica de Engenharia em Tancos. Era o curso mais longo do país. Depois de um período como instrutor na Escola, é que se iniciaram as comissões no Ultramar, no meu caso em Moçambique.

José Carlos de Magalhães Cymbron é engenheiro militar do Exército, reformado, com a patente de coronel. O seu curriculum é conhecido. Destaco as duas comissões de serviço na ex-província ultramarina de Moçambique. Que episódios mais o marcaram nestas comissões de serviço? Era um homem da frente? Viveu a guerra…
Em Moçambique, da primeira vez estive, na Zona Operacional de Tete, (ZOT) mais propriamente, nas antigas minas de urânio do Mavuzi, a cerca de 70 kms da cidade de Tete. Estive como subalterno, sucessivamente, em duas companhias de engenharia a 2.770  e a 3.531, em apoio geral de engenharia às unidades da ZOT. Uma das missões mais arriscadas da nossa missão era o destacamento de ENG. de DOA   que tinha o encargo de restabelecer  e recompor o caminho de ferro de Tete que era a principal via de reabastecimento da barragem. Esse trabalho persistente e violento que tive a honra de acompanhar permitiu que nunca a Frelimo  conseguisse perturbar ou atrasar as obras. Uma  das vezes que percorri a linha contei dezoito locomotivas descarriladas.
A segurança e a defesa da linha muito ficaram a dever às tropas do Caminho de Ferro da Beira e às tropas do Recrutamento Provincial assim como aos helis da base de Moatize. As unidades onde eu estive, assim como quase todas na medida das suas possibilidades, dispensavam um enorme apoio às populações. As companhias de engenharia, por serem muito grandes tinham, normalmente, mais recursos.
Lembro me que a  nossa enfermaria, na 3.531, em pouco tempo já tinha feito 54 partos. Quando cheguei à companhia fui logo escalado para ir de noite, numa Berliet, através duma picada com mata cerrada. a um aldeamento buscar uma parturiente.  Devo dizer que a acção de apoio às populações foi um traço dominante da acção do Exército em África
    Na segunda comissão desempenhei as funções de adjunto e chefe da repartição de Logística do Agrupamento de Engenharia de Moçambique (AEM). O AEM tinha a responsabilidade de fornecer material de Engenharia, não só às 10 companhias operacionais de engenharia como a todas as unidades da Região Militar de Moçambique, assim como a supervisão da companhia de depósito com os seus 7 depósitos espalhados pelo território desde Mueda a Lourenço Marques. Nesse sentido, percorri todo o território sendo que fizemos muitas deslocações ao serviço das Operações pois, por escassez de Oficiais, as solicitações eram frequentes.
Por isso, conheci muitos lugares críticos no Cabo Delgado, em missões normalmente de reconhecimento e avaliação de danos, tendo, por vezes, defrontado situações quentes e de claro belicismo. Devo dizer também que, numa boa parte da minha comissão, fiz parte da Comissão de Defesa de Cabora Bassa como representante do Comando de Engenharia. Acrescento que, nessa altura, tínhamos no Songo (vila junto à barragem) uma Companhia de Minas encarregada de melhorar os obstáculos e lançar campos de minas se necessário. Era, naturalmente, a minha maior preocupação a actividade dessa unidade, inteiramente, composta (Oficiais, sargentos e praças) do recrutamento provincial. De qualquer modo, ao nível das minhas funções, tinha uma visão razoavelmente geral do teatro de operações.

Integrou várias missões de cooperação em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Que finalidade tinham estas missões? Não deveria haver uma maior aproximação destas ex-colónias aos Açores e, através da Região, com a União Europeia? Quer comentar?
As acções em que participei incluíram uma missão militar a S. Tomé com o objectivo de  saber como ajudar a recuperar as estradas da ilha porque a missão fora mal definida e partia dum desconhecimento de base  da situação. Reconfiguramos  a missão, com o entendimento do Embaixador de Portugal, Eugénio Anacoreta Correia e do adido de Defesa, Comandante Oliveira e  Costa, primeiro Director Regional de Pescas dos Açores. Fizeram-se várias visitas  e elaborou-se uma série de propostas exequíveis que passavam pela recuperação de instalações militares, participar na luta contra o paludismo e enviar um conjunto de equipamentos  com os respectivos instrutores para uma instrução in suti Todo um programa financiável e adequado a um país insular  que cativou o Ministro da Defesa e o Ministro das Obras Públicas.
O relatório produzido mereceu os encómios do General Soares Carneiro mas. depois... mudam-se as pessoas mudam-se as vontades. Mas, talvez, convenha dizer que eu nunca tinha visto estradas tão bem feitas como as que vi em São Tomé, sob orientação duma competentíssima Administração Ultramarina de Obras Públicas. Na verdade, o asfalto estava bastante em falta mas, a infra-estrutura e a drenagem estavam intactas ao fim de anos e anos sem qualquer manutenção.
Por outro lado, as estradas de terra nas roças tinham uma drenagem perfeita. Para além disso, havia em São Tomé uma empresa de obras públicas com equipamento operacional adequado (tinha pavimentado o aeroporto) que tinha capital português e um dos sócios era açoriano, o saudoso eng. Manuel Machado Soares.
As outras missões de cooperação foram no âmbito das Pescas da Região Autónoma Açores que acabaram por ter resultado parecido com o descrito. Um outro de cooperação em que tive participação foi a iniciada pela Universidade dos Açores pelo professor José Enes e que teve expressão com o professor Vasco Garcia. Mas, lá está, não houve espírito institucional. É necessário   muita persistência. E,  nas questões estratégicas, é preciso paciência para se criarem oportunidades Os Açores, a sua Universidade e mais umas quantas instituições não podem desistir das questões atlânticas  e serem úteis ao país e, por consequência a  elas próprias. Com imaginação e voluntarismo certamente que papéis irão surgir.

Como descreve a família de hoje e que espaço lhe reserva?
A família, hoje, está sujeita a vários tipos de erosão mas, estou em crer que tal como acontece nas principais civilizações, ela continuará a ser o núcleo dos agrupamentos humanos, mesmo sujeita a alguns ajustamentos. Preocupam-me é que os meus netos possam crescer num ambiente que ponha a defesa da vida, em todas as circunstâncias, no topo dos valores civilizacionais.

Que importância tem os amigos na sua vida?
Os amigos, como  a família, pertencem em primeira linha ao círculo próximo. É por eles que se deve começar a praticar os primeiros mandamentos da lei de Deus. Assustam-me aqueles que começam por amar a Humanidade.

Para além da profissão que actividades gosta de desenvolver no seu dia-a-dia?
Gosto bastante de nadar sempre que posso e gosto, também, de tertuliar.

Que sonhos alimentou em criança?
Em criança gostava muito de voar

O que mais o incomoda nos outros?
A pesporrência e a inveja.

Que características mais admira no sexo oposto?
A delicadeza, a bondade e a feminilidade.

Gosta de ler? Diga o nome de um livro de eleição?
Gosto bastante de ler. “A justificação do tempo”, de Jean Guitton.

Como se relaciona com o manancial de informação que inunda as redes sociais?
Não ligo muito  às redes sociais. Quando ligo, sou bastante selectivo

Como lida com as notíciais falsas e com as redes sociais?
Quando as detecto não ligo nenhuma.

 Como lida com as novas tecnologias e que sectores devem a elas  recorrer para melhorarem  o respectivo rendimento?
 Usa-as tanto quanto baste.

A inteligência artificial está no centro do debate e pode por em risco o ser humano. Até onde deve ir essa inovação?
Podem ser aterradoras. Quero crer que, até certo ponto, podem ser reguladas ou então que se possam gerar antídotos.

Costuma ler jornais?
Leio bastante desde os 10 anos de idade. Lembro-me, perfeitamente, da invasão das tropas russas a Budapeste, em 1956.

O que pensa da política? Gostava de ser um participante activo?
A política e inerente ao governo das sociedades. Embora me interesse pela política nunca me fascinou ser participante activo.

Gosta de viajar? Que viagem mais gostou de fazer?
Gosto de viajar, principalmente, pelo mundo que o português criou. Gosto de viajar, também, pelo mundo das ilhas. Mas porque foi uma viagem que me marcou e até sugiro que os nossos governantes bem poderiam lá passar  um mês como aconteceu comigo. Estou a referir me à Nova Zelândia.

Quais são os seus gostos gastronómicos? E qual é o seu prato preferido?
Eu gosto de todas as maneiras de fazer bacalhau. Bacalhau com todos.

Que noticia gostaria de encontrar amanhã no jornal?
Como eu não sou utópico gostaria de encontrar o anúncio de um verdadeiro “Plano Estratégico Territorial de Turismo.”
Se desempenhasse um cargo governativo descreva uma das medidas que tomaria?
Promoveria todas as medidas que abrissem as ilhas ao mar. Mas, talvez, a primeira era a avançar com  estudo, o mais rápido possível do novo molhe de Ponta Delgada.

Qual a máxima que o/a inspira?
A vida pode ser curta mas, a persistência deve ser infinita.

Escreveu o livro “Os Franceses nos Açores 1964-1994”. Qual a importância que os franceses tiveram neste período para os Açores? O que os levou a afastarem-se?
Os franceses estiveram em Santa Maria e, especialmente, na ilha das Flores onde montaram uma estação de rastreamento de órbitas balísticas  de mísseis de desenvolvimento e de exercício. A ilha das Flores foi, durante cerca de 27 anos, uma peça importante do chamado campo de tiro do Atlântico.  A importância, sobretudo para esta ilha, deve-se ao facto da ida de cerca de cem pessoas o que obrigou  a construir um conjunto de infra-estruturas num tempo recorde  e o que  modificou  bastante o modo de vida dos florentinos, nomeadamente, com a disponibilidade de energia e um serviço de saúde francamente mais avançado do que as restantes ilhas dos Açores à excepção, talvez, das capitais de distrito.
Para além das instruções do Governo Central e da mobilização da nata da Administração Pública portuguesa, especialmente das Obras Públicas, o negociador português Comandante Souto Cruz teve um empenhamento excepcional em beneficiar a ilha o mais que pôde. Mais tarde, a ilha beneficiou, também, com a construção da pista de Santa Cruz o que alterou a vida de relação  das Flores.
  O que levou os franceses a afastarem-se foi a evolução técnica. Por um lado, ao longo dos anos, foram adquirindo as técnicas de base para o  desenvolvimento dos mísseis, por outro, a entrada ao serviço do “MONGE”  que possui o equipamento que permite fazer o que a Estação de telemedidas das Flores fazia, dispensou completamente a presença francesa nos Açores

Em Junho de 2016 escreveu o livro “Uma Aventura Corvina”. Quer fazer uma síntese desta aventura na mais pequena ilha dos Açores?
“A aventura corvina” resulta  do período da minha vida em que, depois da minha vinda de Moçambique, o General Altino Pinto de Magalhães me descobre (foi literalmente o que aconteceu no final de 75). Obtém a minha colocação em Ponta Delgada  como Delegado do Serviço de Fortificações e Obras do Exército. O que é curioso é que a minha guia de marcha dizia que era para assumir o comando  da futura Companhia de Engenharia dos Açores. De facto, o General Eanes tinha-se referido,   publicamente, a isso  por duas vezes. Entretanto, o Exército tinha enviado para o Pico algumas máquinas de terraplanagem para apoiar o PPA (Plano Pecuário dos  Açores). Mal cheguei, recebi ordem  para reunir essas máquinas, formar pessoal e constituir uma equipa no Pico. Inicialmente, continuámos a apoiar o PPA (abrimos inúmeras estradas no Pico com e sem a colaboração dos Serviços Florestais e fizemos vários trabalhos  para as Câmaras Municipais que, por essa altura, não tinham equipamento)  até que surgiu reunirmos todo o equipamento no Cachorro para abrirmos uma pista de terra de 1.200 metros para os Aviocard´s” poderem operar. Não vou entrar em peripécias sobre estes acontecimentos mas dizer que conto no livro os primórdios da construção das pistas do Grupo Central e, naturalmente, a do Corvo. O Governo Regional graças, sobretudo, à clarividência do eng. João Bernardo Rodrigues, disponibilizou todo o apoio que foi possível à consecução desses objectivos. Para a equipa militar que era uma organização sui generis pois  a unidade de engenharia nuca se formou, por isso continuava  pendurada na delegação da SFOE que, nessa altura, fazia obras para a Zona Militar por administração directa. Isto é, era uma organização híbrida, diria, completamente descentralizada e em que as relações de comando não eram claras. Paradoxalmente, talvez tenha sido isso que conseguiu levar a cabo algumas tarefas. A operação do Corvo vai realizar-se nesse contexto que eu conto no livro para além de outros aspectos singulares que pude observar naquela ilha que sofreu alteração no seu modo de vida.

É um homem reformado, mas nem tanto. Com a sua experiência de vida, quer descrever o que, entretanto, tem feito?
Tenho tido actividade e acompanhado o mundo das obras marítimas. Estou a ver se tenho paciência e tempo  para acabar alguns escritos que comecei em tempos e queria acabar quer  na área da geopolítica que é uma antiga paixão, quer  nas minhas deambulações pelo Brasil, quer sobre as ilhas e a insularidade.

Em que Época histórica gostaria de ter vivido?
Não consigo responder a essa questão, que é esmagadora.

Há algo mais de interessante e/ou importante que gostaria de acrescentar?
Aquilo que eu gostava de acrescentar e que resultou especialmente da minha actividade profissional de  apoio às infra-estruturas das Pescas, o que me permitiu conhecer, com razoável pormenor, toda a zona costeira  das nossas ilhas, era que se completasse todo o trabalho de abertura ao “marítimo” que falta realizar nos Açores.
                                                   

João Paz

 

Print
Autor: CA

Categorias: Regional

Tags:

x