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“O Governo Regional e algumas das suas instituições não apoiam devidamente os projectos de açorianos sobre os Açores e as suas personalidades”

 Correio dos Açores - Como começou a sua carreira no cinema e no teatro? Quando era criança já dava os primeiros passos? De que forma as suas raízes açorianas influenciaram o seu trabalho como cineasta?
Rosa Coutinho Cabral (cineasta) Com os meus pais. O amor deles pelo cinema, teatro, música, pintura, foi fundamental. O meu pai representou no Teatro Micaelense e sempre foi muito teatreiro, desde os tempos do liceu, universidade e vida fora connosco. A minha mãe, sem este carácter performativo, era uma amadora de todas as artes. Ambos amantes incondicionais da liberdade com que nos educaram. Passei a vida a ir duas e três vezes por semana ao Teatro Micaelense, com os meus pais, onde a fila J nos era reservada. Éramos uma família muito grande, sempre carregada de amigos e a fila nunca chegava.
Com os meus irmãos mais novos, sempre brinquei aos teatros.  Para mim, Teatro e Cinema são diferentes, mas estão ligados. Ligados pelo seu carácter performativo e estético, pela experimentação e procura, pelo infixo que é inalienavelmente parte integrante do fazer artístico. Como uma mancha na rua, no chão, numa parede, podia ser uma obra de arte, como a minha mãe sempre nos advertiu. Ou um gesto e uma palavra podem significar a representação, como o meu pai sempre lembrou. Tive muita sorte com eles! Que sem qualquer retraimento acharam muito bem as minhas escolhas. Na época fiz a Escola de Cinema e Sociologia ao mesmo tempo.
 
 Ao longo da sua carreira, encenou peças de teatro, colaborou em projectos de videoarte e ópera. Como é que a experiência no teatro e em outras formas de arte visual influenciaram o seu trabalho no cinema?
Evidentemente que se ligam, interpenetram e influenciam- emergem de uma mesma zona de desejos obscuros, fantasmáticos, imprecisos – que nos dão muito trabalho e muita alegria, por vezes, de forma infeliz e intensa.

“Adeus, Macau” foi premiado no Arquitecturas Film Festival em 2013. Pode falar um pouco sobre a inspiração por trás deste documentário e como foi receber este prémio?
Foi muito  bom ter este e todos os prémios, não só eu como a minha equipa, técnica e artística. Só lamento que os concursos do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual) não tenham importância, às vezes nem os referem na avaliação. E de resto, pela falta de apoios que aqui tive, também me parece que ter prémios têm pouco valor.

Realizou um documentário sobre o poeta Camilo Pessanha, intitulado “Pe San Ie: O Poeta de Macau”. Porque escolheu este tema? Qual foi o aspecto mais gratificante de trabalhar neste projecto?
Adoro poesia, porque a poesia, como disse Natália Correia, não é mais que a poesia. São Rosas ao contrário. E o Pessanha era, no caso , uma amizade literária que vinha da adolescência, por ter lido a sua “Clepsidra” muito nova, ainda em São Miguel. Portanto com menos de 14 anos. Depois interessa-me o que o cinema pode fazer, tornando o tempo elástico, entre o meu e o dele. Como é que os nossos olhares se cruzavam entre o passado dele e o meu presente, onde se instalara o futuro dele. Como é que a cidade de Macau, que adoro, pela humidade “açórica” que lá encontro. Lá sinto-me em casa. Na verdade esta elascticidade que só um ensaio cinematográfico pode realizar, é a mesma que me liga com Natália. Uma coincidência: ambas saímos demasiado cedo da ilha e ambas ficamos a eternizar a saudade pelo mar, pela rocha negra, pelo som dos romeiros no meu caso, no caso dela das coroações. Mas não de quaisquer coroações – daquelas que os homens e as crianças fazem da descrucificação de Deus, e das pérolas dos deuses, de irracionalidade e da liberdade que pode guiar a vida. E sim, da mesma forma que me apaixonei, e às vezes odiei, o Pessanha, o mesmo aconteceu com Natália, mas no fim só lhe posso agradecer quase tudo. Natália és grande!
 
O seu filme mais recente, “Coração Negro”, fez parte da Selecção Oficial de Festivais de Cinema Internacionais e conquistou vários prémios, inclusive o de Melhor Realizadora no Krajina Film Festival em 2017. Pode partilhar algumas experiências marcantes na realização deste filme? O que este prémio representou para si?
O filme correu mal e bem. A primeira equipa foi um terror! Já a segunda equipa foi maravilhosa. Foi uma experiência de um cinema intimista que reflectisse a vulcanidade da ilha – a violência de um casal que quase não fala, a não ser depois da morte da relação (e morte dela). Pura fantasmagoria. Quero destacar a produção do Paulo Alexandre Silva, maravilhosa criatura que, infelizmente, já morreu.
 
Pode falar um pouco sobre a criação da produtora de cinema Nocturno (Origem Marginal Filmes) em 2016? Como esta iniciativa tem contribuído para a produção de cinema em Portugal?
 Formei-a inicialmente com o Tiago Melo Bento. Fizemos alguns filmes, em Macau e  nos Açores, e depois entrou um sócio novo a substituir o Tiago , que é o meu irmão António. Foi uma experiência interessante. Mas no panorama português é muito difícil conseguir impor uma produtora nascente, sem contactos lobistas, sobretudo com a Agência Portugal Filmes, principal responsável por colocar os filmes nos festivais estrangeiros de primeira linha, segundo categoria do ICA, fundamentais na valorização do currículo em fase de concursos.

A sua filmografia inclui uma variedade de trabalhos, desde curtas-metragens a documentários. Existe um formato em que se sinta mais à vontade ou que lhe seja mais desafiador?
Gosto de filmar, tanto faz o formato. O principal são os colaboradores que constituem uma espécie de família, que me ajuda a perseguir os meus fantasmas, como o José Carlos Pontes, o João Cabral, a Susana Gomes, o Leonardo Simões, a Raquel Jacinto, o Francisco Costa, o Rui Mourão, o Tiago Melo Bento, e no caso deste último filme, a preciosa ajuda de Ângela de Almeida e de todos os actores que me aturam pacientemente, deixando-se levar, como agora a minha irmã Leonor Cabral, neste último documentário. E claro, a minha família, que me ajuda, especialmente o meu irmão António Cabral que é meu sócio.

Pode partilhar algumas das suas influências no mundo do cinema? Que cineastas ou filmes a inspiraram ao longo da sua carreira?
 Sou muito nietzschiana, se gosto é porque é bom. Ford, Renoir, Godard, Preminger, Ozu, Mizogouchi, Costa, e novidades no mundo da video art, que é também cinema como Kamper, Wilson, e todos os que se deixam arrastar pela luz obscura do tempo, que tudo liga nos seus movimentos improváveis...

Como vê o estado actual da indústria cinematográfica em Portugal? Que desafios e oportunidades identifica para os cineastas portugueses?
A Indústria cinematográfica em Portugal melhorou muito nos últimos 30 anos. A relação do poder com os cineastas melhorou e piorou, uma vez que de repente tudo ficou na mão dos produtores. Não tenho nada contra, muito menos a favor. Defendo filmes de autor, com características culturais, que podem e precisam ser acautelados e promovidos financeiramente por dinheiros públicos ligados ao Ministério da Cultura. Defendo também que outros filmes, de carácter mais comercial, podem ser apoiados pelo Ministério da Economia, por exemplo. Acima de tudo, só há uma distinção: filmes de que gosto e filmes de que não gosto, que me interessam e que não me interessam. Eu tento fazer o que gosto e o que me interessa e não acredito muito que agradem ao “criancismo” da sociedade contemporânea (criancismo, lá está, como dizia Natália).
Portanto, as oportunidades são poucas e sempre para os mesmos, que têm lóbis de produção atrás. Ainda assim sorte. E talento em filmes que admiro do Pedro Costa, por exemplo, da Teresa Vilaverde, ou, outro exemplo, o do João Canijo com uma fotografia surpreendente da talentosa realizadora Leonor Teles. Isso é a parte melhor: ir ver filmes portugueses que gosto e me interessam! Há um açoriano que foi meu sócio, o Tiago Melo Bento, que nos trará boas experiências cinematográficas... Estamos também à espera!

Em que projecto está a trabalhar actualmente e quais são os seus próximos projectos no cinema? Existe algum tema ou história que gostaria de explorar num futuro próximo?
Actualmente, estou a fechar a pós-produção do documentário “A Mulher que Morreu de Pé”. Gostaria de fazer vários filmes nos Açores, dando preferência a algumas figuras, como a Alice Moderno, a Sucuntala de Miranda, ou a Madalena Ferin, por acaso ligada à minha família materna.

Há algo mais que queira acrescentar nesta entrevista?
Eu julgo que o Governo Regional e algumas das suas instituições não apoiam devidamente os projectos de açorianos sobre os Açores e as suas personalidades, como foi o caso do meu mais recente trabalho sobre Natália Correia, no ano do centenário do seu nascimento.
Apesar deste lamento, depois de ter pedido apoio directo ao Sr. Presidente do Governo Regional para poder contar com o Alto Patrocínio do Governo Regional, a verdade é que tive apoios muito reduzidos  da DRAC e da Câmara Municipal de Ponta Delgada, e mesmo da Direcção de Turismo, instituição que, apesar de tudo, me socorreu num momento de grande aflição do ponto de vista da produção local, relativamente ao montante necessário para terminar o filme que será estreado no Teatro Micaelense, no dia 24 de Novembro.
Quero, no entanto, sublinhar que o Teatro Micaelense, sob orientação da Maria José Duarte, foi fundamental para a consecução da estreia da peça Colheres de Prata e das filmagens da mesma, que fazem parte integrante do documentário. De realçar, o apoio fundamental do Grupo Bensaúde e da Biblioteca Pública de Ponta Delgada, da empresa que fez o cenário SolidariedARTE, e os amigos como a Eduarda Bulhão Pato e o Tiago Melo Bento que tanto tempo me acolheram na casa deles. A ajuda da Isabel Albergaria, do Emanuel Albergaria, do Carlos Melo Bento e do Victor Meyreles, entre outras pessoas. Não menciono todas porque seria impossível!
Como diria Natália Correia, a cultura está sob o signo da imaginação e é a parte mais importante da identidade de um povo. Acho que isso que ela disse há mais de trinta anos ainda não foi compreendido, nem ainda se fez justiça ao conceito Nemesiano de açorianidade que ela tanta prezava.                     

Carlota Pimentel

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Autor: CA

Categorias: Regional

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