Com que idade foi para a escola?
Fui para a escola com cinco anos, porque a minha irmã foi aos sete e não queria ir sozinha. Lá fomos, para uma escola paga onde cada uma pagava um escudo, dois escudos as duas. Fiquei lá até aos sete anos e quando fui efectivamente para a escola já sabia muita coisa. De pequenina já estava de ponteiro na mão a ensinar a 3ª classe na escola. A professora passou-me da 1ª para a 2ª classe, mas entretanto veio outra professora e viu que eu sabia e saltou-me para a 3ª classe.
Que idade tinha?
Fui para a escola com sete anos e com 10 anos fiz a 4ª classe.
Ser professora foi uma coisa que sempre quis?
Eu brincava com as minhas irmãs às escolas e eu era a professora. Mas foi muito complicado porque os meus pais não tinham muito dinheiro. Naquele tempo o meu pai era lavrador, vivíamos razoavelmente mas não era para ir estudar. Fiz a 4ª classe e fui aprender a ser costureira, mas entretanto vinha para casa e dizia que me doiam as costas. Estive dois anos em casa e a minha professora da primária veio-me convidar para vir ajudá-la na escola. E comecei. Ela pegava numa turma e eu pegava noutra. Eu fui professora desde os 12 anos. Umas vezes dava matemática, outras vezes dava português.
Era para ser regente escolar, mas só se podia ser com 18 anos e a professora disse-me que como estava ali há três anos que ia estudar e que ela me ia ajudar. Fui fazer exame de admissão a Ponta Delgada e fiquei em casa da mãe dessa minha professora. Vim, continuei a estudar e ela ensinou-me o 1º ano. No 2º ano ela já não me sabia ensinar Francês e tive de ir para outro lado, já no 3º ano foi o professor Manuel António Cansado, pai do Manuel António Cansado, que foi da SATA, que me ensinou o 3º ano.
O problema é que eu queria muito continuar os estudos mas não podia. Eu gostava muito de estudar e a minha professora disse-me que podia ir para casa dos pais dela, em Ponta Delgada onde não pagava nada. Lá fiz o 4º, 5º e 6º anos e o Magistério Primário. Era muito amiga da Antonieta Pimentel, éramos as únicas duas que não tínhamos estudado no Liceu e fomos sempre amigas.
Para o 7º ano, a minha mãe disse que não podia seguir porque não tínhamos dinheiro, porque eu dava todos os meses mil escudos em casa, com as explicações de matemática que ia dando. A Antonieta Pimentel disse-me que podia estudar com ela, com os livros dela. Estudava no Magistério Primário, à noite ia a casa dela para estudar porque eu não tinha os livros. Mas não me sentia bem porque não tinha aprendido bem, não tinha os livros.
Fui fazer exame, mas para isso tinha de pagar 200 escudos porque era externa. Lá a minha mãe me deu o dinheiro e fiz o exame.
Tive um professor de matemática que me ajudou, porque eu ia para as salas de estudo e esse professor, sabia que eu tinha muita vontade de aprender, e disse-me que ia ver o meu horário e ver a possibilidade de ele me ensinar. Ele dava desenho ao 1º ano e explicava-me num dia da semana o que tinha dado toda a semana. Fiquei com 17 valores a matemática. Mas tive o meu primeiro chumbo, 6 valores a biologia porque não tinha o livro. Fiz exame na segunda época e tirei 14 valores. Aprendi sozinha porque depois me emprestaram o livro.
Dava explicações de matemática, desde o 5º ano, e ia tendo o meu dinheirinho.
Já com o Magistério Primário fiquei professora e a minha primeira escola foi na Ribeira Seca. Mas era muito difícil ficar efectiva, apesar de ter ficado com 16 valores de média. Fiquei aqui um ano e concorri para a Lombinha da Maia.
Era diferente a Lombinha da Maia da Ribeira Seca?
Não havia luz naquela altura. Dormia-se mal ficava de noite. Além disso, o meu quarto ficava na mesma casa do que a escola. Abria a porta do quarto e era logo a sala de aulas. Lá vivi três anos e fui para o Pico da Pedra onde fiquei dois anos.
Mas enquanto estava no meu segundo ano de professora, o director do Externato da Ribeira Grande convidou-me para ser professora lá. Estive lá 19 anos, em acumulação com a escola.
Depois do Pico da Pedra, fui para a Ribeirinha e voltei aqui para a Ribeira Seca. A escola era até às 15 horas e depois ia para o Externato. Chegava a casa e dava explicações.
Uma vida de trabalho…
Até às 23 horas muitas vezes. Tive então um grupo muito grande de homens que foram para as Colónias, na altura do Ultramar, que sabiam só a parte das letras e quando regressaram faltava a parte das ciências. Trabalhei com eles a parte de ciências, história, geografia, e todos eles passaram.
Entretanto fui para a Ribeira Grande onde estive três anos, na escola primária. Começou o ciclo preparatório e como eu tinha o 7º ano fui para a Escola Gaspar Frutuoso. Lá fui delegada da disciplina de Matemática, mostrava o material com que ensinava, porque era tudo com materiais que eu ensinava. Os meus alunos eram óptimos em Matemática.
Quando diz que ensinava com materiais…
Era a concretização da aula. Tinha fichas para eles fazerem, tudo diferente. Ninguém ensinava da maneira que eu ensinava.
Porque é que ensinava assim?
Ensinava de maneira acessível à criança para ela perceber o que eu estava a dizer. Por exemplo, eu nunca dizia “propriedade comutativa” porque eles não sabiam o que eu estava a dizer. Eu dizia que pegava naqueles números e ia mudar, mas em vez de mudar posso usar a palavra comutar. E dizíamos, em vez de mudar, comutar. Aparecia então a palavra comutativa de maneira que eles conseguiam alcançar o sentido e conseguiam perceber. Em qualquer matéria eu dava a concretização e não avançava a lição enquanto não tinha os alunos atentos. Havia sempre uma história e quando eles nem se apercebiam entrávamos na lição. E assim fiz a minha vida.
Como aprendeu esses métodos? Achava que era preciso descomplicar a Matemática?
Eu aprendi muito com a minha professora primária porque ela tinha um jornal muito antigo que era “Escola Portuguesa”, onde vinham lições que hoje não se vê. Trazia a explicar como se dava uma lição de Matemática, como se dava uma lição especial, uma lição de Ciências, tudo. Como a minha professora era assinante mas pouco lia, eu lia tudo. Aprendi muito assim.
Em 1972/73 fui então para a Escola Gaspar Frutuoso onde estive três anos e depois fui para Ponta Delgada para a Escola Roberto Ivens, onde fiz o meu estágio com uma professora que foi minha aluna e outra que era minha amiga.
Fiz exame, não tive grandes notas, não ajudou muito em termos de dinheiro, mas aceitei, para poder ficar efectiva e ganhar no Verão.
As professoras não ganhavam no Verão não é?
Tinha pedido a exoneração primária e estive três anos novamente sem receber no Verão. E continuava a dar todos os meses à minha mãe mil escudos.
Manteve-se sempre em Ponta Delgada depois?
Havia só concurso na Roberto Ivens e fiquei efectiva lá, mas vim orientar estágios de professores para a Ribeira Grande onde orientei dois grupos de professores. Eu ensinava, fazia coisas diferentes, era delegada de disciplina e explicava como fazia nas minhas aulas, para eles saberem.
Os pais pediam para os melhores alunos ficarem na minha sala. Tenho antigos alunos engenheiros, doutores, e também antigos alunos que varrem o chão, mas são todos meus amigos.
Como é que eram os alunos quando começou? Gostavam de Matemática ou teve de incentivá-los a gostar?
Antigamente os alunos saiam bem preparados, agora é que saem da 4ª classe sem ter bases. Mas aprendiam e iam gostando da matemática. Tiravam notas boas, alguns até muito boas notas, tive um aluno que lhe deu 20 valores, o Manuel António Cansado, filho do meu professor. Outro aluno muito bom foi o engenheiro Vieira, fui professora dele, da mulher e dos seus primeiros cinco filhos.
Mas ainda estou a ensinar matemática e tudo de graça. Tive aqui uma vizinha que ensinei no 3º e 4º ano, que não estava bem sabido, também quis que continuasse no 5º e assim fiz. A mãe foi minha aluna e agora ensino a filha.
Quando estava na escola primária incentivava a estudar. Alguns não tinham dinheiro, mas foram fazer o exame de admissão e como eram bons alunos o Externato recebia dinheiro do engenheiro Monteiro, que estava na Câmara, que ajudava os alunos com menos posses. Os alunos iam para o Externato de graça e muitos foram professores.
Depois dessa vizinha veio uma prima minha que me disse que o filho não sabia matemática e mandei-o para minha casa. Ele esteve aqui, não tinha bases mas tinha inteligência. Estava nos 50 e tal por cento e no 9º ano teve 90%. E não gostava de matemática. Agora quer tirar economia.
E os alunos de hoje em dia?
Os professores hoje em dia não têm pulso. Deixam os alunos incomodar na aula, não sei como se pode trabalhar desta maneira. Eu não tinha alunos que incomodassem as aulas, só tive um aluno uma vez que lhe pedi para ele sair da sala, porque ele falava muito. Mas ele já tinha aprendido tudo, faltava-lhe só fazer o sumário. Nunca pus alunos na rua e todos passavam com o meu método. Ensinava de outra maneira diferente.
Com essa paixão pela matemática…
É uma paixão mesmo. A Matemática é linda.
Não é o “bicho-papão” que se fala?
Não é. O professor é que tem de entusiasmar os alunos. Se o professor não gosta de Matemática, transfere essa sua aversão aos alunos. Toda a gente quando ouve falar em Matemática encolhe-se, mas isso está mal.
Mas o problema é não se darem as bases na escola primária?
É. Depois também há o problema das estatísticas que tem de se fazer, tem de se mostrar que se fez. Mas digo e continuo a dizer que os alunos que não sabem bem Português e Matemática não podem passar do 1º ano para o 2º ano. Isso é que é o pior. Eles passam, os professores querem que os seus alunos passem sempre, mas quando isso acontece os alunos vão sempre muito mal. E chegam ao 4º ano e são obrigados a ir de qualquer maneira para o 5º ano e não conseguem fazer as coisas.
São novas maneiras de ensinar...
Estas novas maneiras de ensinar a fazer as contas de dividir de uma maneira diferente, como se compreende que um aluno vá dividir um número por 12 e tem de contar 12+12+12 para ver se já chegou ao número pretendido. A demora que leva isto. Levam 15 minutos a chegar ao resultado e quando é para os testes demoram muito tempo.
Agora perguntamos quanto é 4+3 e contam pelos dedos. Onde é que já se viu isso? Não pode. Já vem mal de trás.
Voltando aos seus antigos alunos, quando a vêem reconhecem-na?
Todos me vêm cumprimentar. Muitas das vezes já não os conheço porque cresceram, mas eles vêm ter comigo com alegria. Todos são meus amigos.
Foi-lhe atribuído o título de Comendadora…
Essa distinção foi ainda pelo Mário Soares, em 1985. Mas eu sou muito simples, essa distinção não me diz nada, mas fiquei contente. Comendadora mulher, naquela altura fui a única.
Também tive uma distinção pela Ribeira Seca, a Câmara da Ribeira Grande também me deu uma medalha de ouro juntamente com outras professoras.
É motivo de orgulho?
É. Mas pouca gente sabe. É que na altura que era para receber, perguntaram-me se queria receber aqui a medalha na Ribeira Grande ou se ia receber das mãos do Representante da República nos Açores na Terceira. Eu gostava muito de passear e convidei uma professora amiga, fomos as duas, e estivemos lá seis dias.
Como é que passa agora os seus dias?
Continuo com a minha Matemática e vou lendo. Tenho um tablet e gosto muito de fazer o sudoku lá. Às vezes mando emails mas não é muito. Cheguei a ir uma vez ao facebook mas achei que aquilo era um disparate. Punham retratos, punham tudo das suas vidas ali e não quero nada disso.
Que livros é que gosta de ler?
Tenho aqui um que um antigo aluno me ofereceu. “Uma mãe perfeita”, mas é uma tradução e tem os nomes americanos e para eu conseguir ler, tive de escrever numa folha os nomes das personagens e escrever quem era quem.
Tenho a Bíblia que vou lendo. Tenho o missal porque não vou à missa, que já me custa muito, mas vejo na televisão. Leio na véspera e depois vou acompanhando na televisão. Sou religiosa, ao Sábado vêm-me dar a comunhão.
E gosta de viajar?
Gostava muito. Fui muitas vezes ao Canadá, porque a minha família está toda no Canadá. Éramos oito filhos e eu sou a segunda.
A primeira vez que fui ao Canadá fui com a ideia de ficar, mas fez-me falta o meu jornal, o Correio dos Açores, do qual sou assinante desde 1950. Estava habituada a resolver as coisas aqui, lá tinha de pedir ajuda porque eu não me conseguia determinar. Os meus irmãos disseram mesmo que aqui ficava melhor. Mas fui umas oito ou nove vezes ao Canadá.
A primeira vez que viajei foi para ir a Roma. Uma amiga veio ter comigo e disse que ia a Roma e queria que eu fosse com ela. Foi uma viagem de 29 dias, de autocarro. Nessa altura tinha 12 contos, só das explicações porque o resto eu dava à minha mãe. A viagem foi 10 contos e o resto foi para as despesas.
Gostei muito. Fomos então para Lisboa, depois para o Porto, demos uma volta lá, estivemos em Fátima, saímos por Elvas para Espanha, estivemos nos museus em Madrid. Em França fomos a Paris, onde fui ao Louvre, depois fomos para Roma e Vaticano. Ficámos uma semana em Roma. É tudo muito lindo, são coisas que nunca se esquece. Quando regressámos fomos pela Suíça, que era uma maravilha e gostava muito de viver lá.
Fala com tanta paixão da Matemática. Não lhe deixou tempo para casar?
Não tive tempo para casar. A minha mãe dizia-me sempre que quando começasse o namorico, que voltava para casa e não ia estudar mais. E eu, estava em Ponta Delgada, estava a estudar e ia muitas vezes à janela para descansar e quando via rapazes para lá e para cá, fechava a janela. Para não ter de deixar de estudar.
Depois nunca mais tive tempo para isso. Houve pessoas que me vieram pedir para casar, até um sujeito que eu não conhecia, a irmã veio pedir para eu casar com ele. Mas não tinha paciência.
Casou com a Matemática…
Pois. Eu gostava de ir para o convento, gostava da vida de convento, mas não gostava daquelas roupas. Era vaidosa.
Chegou a fazer algum tipo de preparação para isso?
Não. Mas falo nisso e digo que em vez de ir para um convento, fiz o convento cá fora e ajudei muitas pessoas que não poderiam ser o que são agora se eu tivesse ido para um convento.