Liberal de Jesus: “A liberdade trouxe instrução, mas menos educação”

Liberal Soares de Jesus e Osvalda Tavares são dois cidadãos da nossa praça que nasceram nos anos 50 e foram deste modo influenciados por um certo e determinado contexto histórico. Estudos indicam que pessoas dessa geração possuem rendas mais consolidadas, têm padrões de vida mais estáveis, sofrem pouco influência da marca no momento da compra, são firmes e maduras nas decisões como ainda não se influenciam facilmente por outras pessoas, entre outras. Tendo como base alguns desses valores, fomos ao encontro de duas dessas pessoas para tentar perceber como se cuidam e o que mudou face ao presente. Liberal de Soares de Jesus, de 66 anos de idade, goza da condição de reformado há 14 anos. Foi em tempos um dos administrativos da EDA, tendo colaborado ainda no comércio (“Os Barateiros”) e na antiga denominação da Transinsular (CTM). Na reforma, Liberal ocupa o seu tempo ajudando a mulher nas lides de casa. Para além das compras nos hipermercados vai ainda buscar a neta à escola. Com um casal de netos, o mais velho já tem 21 anos e já tem outras ocupações próprias da sua idade. Não faz muito mais no lar porque tem problemas lombares, mas confessa-se “um bom prato de mesa”. Na cozinha desenrasca-se. “Gosto de cozinhar, mas não sou grande cozinheiro”. Liberal tem uma filha, muita amiga dos pais, que sempre percebeu que os pais tinham de ir muitas vezes ao continente porque os seus sogros eram de lá. Entretanto, eles faleceram, e as viagens ficaram em “stand by”. Pelo menos por agora, “até porque tem em mente um dia realizar um cruzeiro”, aproveitando também o facto, da mulher também estar agora reformada. Em família, “os jantares são sempre realizados não só em ocasiões especiais”, como o Natal ou a Páscoa, “mas também em datas de aniversários ou até mesmo aos fins-de-semana”, quando calha, “porque os horários nem sempre coincidem”. Liberal, mulher, filha, genro e netos, são seis os membros da família que se juntam quando podem, onde nesta altura do ano, o calor do Verão convida a churrascos ou até mesmo a portuguesa típica e brilhante sardinhada. Muitos e bons amigos Quanto a amigos, confessa que “tem muitos e bons, graças a Deus. Aliás, alguns dos meus amigos são os mesmo do passado e outros, não.” Seja nas horas boas ou más, um bom amigo é sempre um presente. “Fala-se de tudo um pouco, menos da política. Fala-se de futebol, revive-se o passado com muita saudade e das nossas brincadeiras de infância, coisa que hoje já não acontece”. E para quem não sabe, Liberal jogou futebol no saudoso Micaelense Futebol Clube, e quando encontra algum colega de equipa desse tempo “é como se fosse uma festa”. Liberal entende que com “o passar dos anos a sociedade tem vindo a evoluir e transforma-se de várias formas, desde a sua forma de pensar e agir, até mesmo no que diz respeito à mudança de valores e princípios”. Por isso, não estranha muito a Internet, onde até tem uma conta no Facebook. Conta no Facebook e alguns jogos Para além do “Face”, entretém-se ainda com alguns jogos na Internet, mais ao jeito de plataformas, mas também alguns jogos construtivos. “Ser jovem hoje em dia é muito diferente do que era ser jovem da minha época. O mundo mudou, e muitas coisas que existiam, hoje já não existem mais. O que era moda, hoje já não é e o que era sucesso hoje é um clássico”. Por outro lado, os computadores mostram respostas vertiginosas a questões rápidas. “Tudo é mais rápido e as respostas surgem do nada”. Apesar de entender este novo conceito de tecnologias, Liberal desaprecia o tempo que os jovens passam, em demasia, nos celulares e nos tablets. “É quase como se fosse uma doença e um vício como se de tabaco se tratasse”. “No meu tempo jogava-se às escondidas, às apanhadas, ao pião, ao berlinde, mas hoje joga-se isso tudo na Internet e muito mais, num qualquer computador de secretária. Os jovens já quase que não convivem uns com os outros e ficam isolados nos seus quartos a desperdiçar horas a fio das suas vidas”. Somos pais duas vezes Abordando a relação com a filha, Liberal considera ser “muito boa”, mesmo quando as ideias divergem. “Quando se discute, no bom sentido da palavra, os assuntos são abordados e chega-se sempre a um consenso preservando-se os valores capazes de manter a família unida”. Já a ligação com os netos “é ainda melhor, até porque os avós são pais duas vezes”. Claro que a esmagadora maioria dos netos gostam dos avós e adoram principalmente a paciência que têm para com os mais novos. No caso do nosso entrevistado, e nos tempos que correm, os avós têm um papel preponderante porque agora também têm mais tempo livre e podem colmatar a ausência dos pais quando trabalha. “Não posso, é entrar em conflito com o meu neto mais velho porque tem o seu clube e eu sou adepto de outro emblema” (risos). Contudo, aconselha-se mesmo quando aposta no Placard. Acerca do seu modo de vestir, Liberal diz que mudou em relação ao passado. “Naquele tempo éramos oito irmãos e só o meu pai trabalhava para pôr comida na mesa. Vivia-se com alguma dificuldade e as calças rasgadas que agora está na moda remendava-se, mesmo que fosse doutra cor, porque não havia dinheiro para comprar outras”. Presentemente, “os mais novos só querem roupas de marca e até mesmo o calçado não passa despercebido destacando-se as marcas All Star ou Merrell”. O que mudou foi também a alimentação. “Em criança as sopas imperavam e comer carne de frango ou de vaca era um luxo que só se podia ter no Natal ou noutras ocasiões especiais. Não se passou fome, mas era tudo muito regrado porque a alimentação era o mais importante. O resto vinha por acréscimo. Hoje em dia, os alimentos abundam e há mais poder de escolha”. Liberal concorda que no passado havia coisas ou situações melhores que hoje, como mais segurança, mais respeito, uma vida mais calma. “A mudança surgiu com o fim da ditadura e foi como o abrir de uma gaiola para os pássaros fugiram, e depois essa liberdade tornou-se mais em instrução do que educação”. A cumprir serviço militar, Liberal estava só à espera de cumprir mais um ano de tropa, quando foi informado que havia uma quantidade de açorianos que tinham de ir para o continente e que seriam divididos por várias unidades. “Fui para Santarém, onde estava o cabecilha da Revolução de Abril, Salgueiro Maia. Cheguei lá no dia 10 de Março de 1974, num Domingo, e logo no dia 16 de Março houve aquela Intentona das Caldas da Rainha, que no fundo foi uma tentativa de golpe de Estado falhada”. No ar pairava que algo mais viesse a acontecer e assim foi. “Naquela noite, já estávamos deitados quando fomos acordados pelo oficial de dia, que nos mandou formar na parada. De seguida, o Capitão Salgueiro Maia comunicou-nos a situação, salvaguardando, entre outros propósitos, a necessidade de pôr cobro à Guerra do Ultramar, que só se conseguiria derrubando o regime ditatorial do Estado Novo. Aguardávamos as ordens e escutávamos a 1.ª Senha (incentivos), para o início das operações militares a desencadear pelo Movimento das Forças Armadas, que foi dada a escutar por João Paulo Dinis aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa: «Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Euro Festival 74, E Depois do Adeus...»”. Já equipados e com todo o material que “havíamos de marchar para Lisboa surgiu a 2.ª Senha para continuação do golpe que foi dada pela canção Grândola Vila Morena, de José Afonso. Partimos de Santarém cedo e chegamos ao Terreiro do Paço por volta das 05h00. O pessoal foi distribuído, com os carros de combate colocados em sítios estratégicos junto dos ministérios de então. Três ou quatro horas mais tarde surgiu o Regimento de Cavalaria 7 que era a favor do Estado Novo, existindo ainda um fragata no Rio Tejo. Com o tempo a passar, o Capitão Salgueiro Maia assegurou-nos que o comandante dessa fragata não iria disparar contra nós. Com essa certeza, só nos preocupava o Regimento de Cavalaria 7 que era comanda, da por um brigadeiro que mandou abrir fogo, acção que foi recusada com muitos elementos a mudarem-se para o nosso lado”. E porque as forças fiéis ao regime não dispararam houve mais rendições. “A nossa antiga Escola Prática de Cavalaria de Santarém estava incumbida do Terreiro de Paço e onde estava o Presidente do Conselho de Ministros Marcelo Caetano, no Quartel do Carmo, local onde foi o primeiro comando da GNR. Aqui é que houve mais alvoroço porque tivemos que abrir fogo, mas graças a Deus ele rendeu-se e exigiu que fosse lá um oficial-general para receber o governo, porque não queria vê-lo cair na rua. Foi lá o General Spínola e de seguida, afastado do poder pelo golpe dos capitães, Américo Tomás e Marcelo Caetano foram enviados logo no dia seguinte para a Madeira e mais tarde para o Brasil”. E assim, se conta parte do 25 de Abril quase sem sangue. “As únicas vítimas mortais da Revolução de Abril ocorreram em frente à sede da PIDE, entre eles, um micaelense natural de Santo António, que acreditava convictamente na democracia”. “Os jovens usam e abusam da internet”, opina Osvalda Tavares Osvalda Maria Pimentel Pontes Tavares, nasceu a 21 de Abril de 1950. Com 69 anos de idade, a nossa interlocutora é natural da Fajã de Baixo. Toda a sua vida foi doméstica, porque o marido, entretanto já falecido, ganhava o suficiente para que ela tratasse dos seus cinco filhos, no presente todos maiores de idade, quatro raparigas e um rapaz. Para fazer face à melancolia do dia-a-dia, esta avó de 4 netos dá apoio à paróquia da Fajã de Baixo todos os Sábados, onde o seu responsável diocesano é Paulo Borges que defende o Cristianismo como “religião da família”. Para além dos seus quatro netos, três rapazes e uma rapariga, Osvalda tem um irmão a residir em Toronto, no Canadá, há mais de quatro décadas. Como nunca veio cá, foi lá visitá-lo. “Foi uma emoção enorme”, revela, “até porque só tenho aquele”, sustenta. Hoje em dia os contactos são feitos por telefone “quando calha”. Com os filhos crescidos, a família junta-se nas épocas mais festivas e já não é como no passado, quando os encontros eram aos domingos onde se degustava uma boa caldeirada de peixe ou um cozido à portuguesa, onde depois não se enjeitava uma siesta. Valorizo mais a família Quanto a amizades, Osvalda diz que são poucos e contam-se pelos dedos. “São mais conhecidos do que amigos. Valorizo mais a família”, reforça. Nesta nossa agradável conversa, assunto abordado foi a utilização em excesso das novas tecnologias entre os jovens, que passam horas a fio conectados entre si com os celulares, tablets e outras tecnologias. Confessando-se pouco adepta da utilização da Internet, no entanto entende alguns dos seus benefícios, mas por outro lado diz que “esses progressos trouxeram vários problemas para as pessoas mais velhas, nomeadamente ao nível tecnológico”, assumindo com naturalidade que “as pessoas com mais idade não vejam com bons olhos as novidades ou não se adaptam a elas ou o fazem lentamente”. E porque privilegia o relacionamento familiar, Osvalda comenta com alguma amargura que o excesso da utilização das novas tecnologias faz com que “os jovens vivem um mundo virtual sem se relacionarem”. A dependência virtual é real, “aprisiona milhares de pessoas e assume proporções nunca antes visto”. A relação com os filhos “graças a Deus é boa”, assegurando ainda que “não tem más relações nem com os filhos nem com os netos”, apesar de continuar a criticar as horas excessivas que os mais novos passam na Internet ou nas consolas. E porque assim é, também diz que “a nova geração é mal-educada porque muitas vezes não respeita os mais velhos”. Foram muitas as mudanças Com os tempos vieram ainda outras transformações. Foram muitas as mudanças e se no passado havia pequenas mercearias ou o mercado, que “felizmente ainda existe”, os hipermercados trouxeram maior poder de escolha e melhores preços. “Lembro-me do meu pai fazer as compras na mercearia, uma vez por semana e não havia mais nada, mas dava-se também mais importância aos legumes que se colhiam na terra, onde tudo era aproveitado”. No presente, “salvo raras excepções, os jovens nem sequer querem ouvir falar de cultivar seja lá o que for”. “As últimas décadas trouxeram grandes mudanças”, onde a ida à pequena mercearia traz cada vez menos memórias, enquanto os hipermercados são cada vez mais a imagem do sector. Pouco a pouco as coisas foram mudando e assim nasceram as lojas mais especializadas e por fim os centros comerciais que vieram dar um sentido completamente diferente à expressão de “ir às compras”. “Hoje posso usar calças” Ao nível do vestuário, e das compras do passado e do presente, “hoje pode usar calças, coisa que no passado não podia ser, porque não era muito usual uma rapariga ou senhora usar calças”. “Não tenho já idade para seguir modas, tenho aquilo que posso e quero, porque é possível vestir bem sem estar na moda, desde que me sinta bem, está tudo bem”. Excepção à regra, em termos de moda, “é a ida à cabeleira, de dois em dois meses, não só para cortar o cabelo como para disfarçar os cabelos brancos. Há quem assuma os cabelos brancos de forma natural, mas pinto os meus de forma espontânea e percebo assim que estou mais inteira”. A terminar, Osvalda disse que os conflitos podem ser resolvidos e a solução, nem sempre é assim tão difícil. Os idosos até são pessoas com que nós podemos aprender muitas coisas.
Print

Categorias: Regional

Tags:

Theme picker