Entre as principais alterações que ocorreram nas famílias do século XXI, alterando aquele que era o conceito tradicional de família, está a redução da dimensão das famílias, o aumento do número de famílias reconstituídas e ainda a maior diversidade nas formas de viver em família, destaca a socióloga Piedade Lalanda.
Neste sentido, a redução do número de filhos e, por consequência, da dimensão das famílias, surgiu por intermédio de fenómenos como “a sobrevalorização do amor em detrimento da instituição familiar, associada a uma maior dessacralização do casamento e ao aparecimento da contracepção eficaz” que, eventualmente, criaram na sociedade portuguesa, e por conseguinte açoriana, espaço para os novos papéis que a mulher desempenha actualmente, explica a também professora universitária.
Para a socióloga, uma outra alteração significativa na estrutura das famílias portuguesas deve-se também ao reconhecimento de que “não é preciso estar casado para se ser pai ou mãe”, levando também a que muitos casais tenham optado por “iniciar a vida em comum sem vínculo formal”, neste caso a união de facto, levando também a que outros casais nunca tenham concretizado esta mudança de estatuto, afectando de forma directa o número de casamentos realizados.
Com este novo significado atribuído ao casamento, Piedade Lalanda explica ainda que por este “estar menos associado a um compromisso para a vida”, proporcionou-se o aumento do número de divórcios, o que por seu turno resultou também no aumento do número de famílias monoparentais, sobretudo de mães com filhos a cargo, e também no aumento do número de famílias reconstituídas, ou seja, no aumento dos casos em que “há filhos de anteriores relações e, em alguns casos, filhos da nova relação”.
Nos Açores, de acordo com os dados do último recenseamento datado de 2011, existiriam 4318 núcleos familiares reconstituídos, representando 6% do total de famílias residentes no arquipélago, fazendo com que a Região Autónoma ficasse acima da média quando em comparação com as restantes regiões de Portugal, uma vez que este fenómeno social obteve maior destaque sobretudo nos municípios das Lajes e Santa Cruz das Flores, Horta e São Roque do Pico.
Porém, aponta Piedade Lalanda, os Açores foram “durante décadas uma região conservadora ao nível do casamento e da fecundidade”, chegando a ter “as mais elevadas taxas de nupcialidade, natalidade e fecundidade do país; uma baixa idade média no casamento e no nascimento do 1º filho e uma taxa de inactividade feminina (domésticas) das mais elevadas”. Foi só a partir dos anos 90 estes valores se começaram a alterar.
Assim, a redução do número de crianças por família deu azo ao “aumento do investimento material e simbólico no filho único”, acompanhada também pelo risco de condicionamento das escolhas dos adultos ou dos pais, aponta a socióloga. Por outro lado, a introdução das novas tecnologias da comunicação nas relações familiares e educativas deve, de acordo com Piedade Lalanda, “ser motivo de atenção, na medida em que podem estar a substituir a atenção que é devida às crianças, o tempo para brincar e o diálogo entre gerações”, levando a que as crianças tenham uma maior interacção com estranhos do que com familiares.
Por outro lado, a professora universitária afirma que “quando se recorre ao telemóvel ou ao “tablet” para acalmar a criança que não sossega, é evidente que esse tempo, mesmo de presença física junto da criança, não está a contar”, pois a atenção que os mais novos exigem parte da “escuta das necessidades específicas da criança ou do adolescente e da capacidade de ajustar e reinventar a prática educativa, sem pôr em causa a transmissão de valores estruturantes”.
Neste sentido, apesar de todos os benefícios que estes novos recursos tecnológicos apresentam, uma vez que podem ser importantes auxiliares didácticos e de captação de conhecimento, Piedade Lalanda afirma que “não nos podemos esquecer que educar é amar, logo, os afectos devem ser o cimento da educação sem os quais não há lugar a uma adequada transmissão dos valores estruturantes que constroem a cidadania e a humanidade”, uma vez que “o uso excessivo das tecnologias pode minar a relação entre adultos e crianças, reduzindo o tempo de contacto, as aprendizagens e a imitação de exemplos ou a descoberta individual que se faz através da relação com o outro”.
Por esse motivo, a socióloga refere que “os tempos livres das famílias podem ser momentos de descoberta e crescimento pessoal se não forem estilhaçados em função dos prazeres pessoais, ou seja, se cada um não estiver mais preocupado em fazer o que lhe apetece, sem ceder espaço para fazer experiências comuns: um piquenique, um jogo de futebol ou um castelo de areia na praia, podem ser momentos de excelência para construir a relação entre pais e filhos”.
Porém, Piedade Lalanda afirma que “há, no entanto, famílias onde a tensão aumenta durante as férias, porque não têm hábitos de vida comum e cada um dos membros não se dispõe a ceder do seu tempo pessoal para estar com o outro. Sem esse espírito de partilha, os tempos livres tornam-se num “problema” para resolver e não numa oportunidade para construir a família”.
Outro dos problemas que assolam a família contemporânea portuguesa e açoriana está no facto de as crianças passarem cada vez mais tempo ausentes dos pais, seja em creches, jardins-de-infância ou escolas. De acordo com estudos realizados, este facto deve-se, refere Piedade Lalanda, “à reduzida percentagem de mães portuguesas que trabalha a tempo parcial”, mas salienta que este é um fenómeno que “deve fazer reflectir as famílias portuguesas”.
No caso das escolas, a socióloga refere que “na sequência do processo de delegação no pré-escolar, a escola pode ser vista como a principal responsável pela educação das crianças”, uma vez que é a escola que tem assumido “um papel importante no desenvolvimento não apenas de competências cognitivas, mas também relacionais, que podem induzir uma desresponsabilização por parte dos pais naquela que é a principal função que lhes assiste, ou seja, educar com afecto”.
Em suma, Piedade Lalanda afirma que “a criança não pode ser uma bola de pingue-pongue entre estes dois mundos, escola e família. As duas instituições que têm de trabalhar em conjunto para melhor contribuir para o desenvolvimento individual de cada criança ou jovem”.